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quarta-feira, 28 de abril de 2010

3.1 – GUIMARÃES ROSA: MUDANÇAS NO DISCURSO NARRATIVO


3.1 – GUIMARÃES ROSA: MUDANÇAS NO DISCURSO NARRATIVO

NEUZA MACHADO



“Ah! meu próprio passado basta para me atrapalhar. Não preciso do passado dos outros. Mas preciso das imagens dos outros para recolorir as minhas. Preciso das fantasias dos outros para me lembrar que, eu também, fui um sonhador de vela" (Gaston Bachelard).

Guimarães Rosa, em sua primeira fase de transição criadora (A Hora e Vez de Augusto Matraga), busca na matéria terrestre e no fogo as imagens que formarão o seu particular universo ficcional. Distanciando-se aos poucos da imaginação reprodutora de bem ver, procura sonhar novas imagens sob o domínio das lembranças da infância.

No início, o real se faz presente com a reprodução do aspecto exterior do chefe político encarnado na figura do personagem Nhô Augusto, senhor das propriedades denominadas Pindaíbas e Saco-de-Embira. A “vontade de poder” do Artista examina primeiro os signos da majestade: o majestoso e dominador personagem submetendo o povo do arraial do Murici às suas próprias leis e desmandos.

Nesse início (as primeiras linhas da narrativa), realça a figura de Nhô Augusto, filho do Coronel Afonsão, e, apresenta o major Consilva, inimigo político da família Esteves, destacando, com esta atitude, a aparência dos chefes dos diversos núcleos comunitários (capitães, majores e coronéis, de acordo com o poder de compra dos titulados), mostrando-se temporariamente seduzido pelas lembranças do passado, reportando-se ao centro do núcleo social sertanejo, amarrando-se à memória ao invés de se utilizar das recordações.

Esgotando-se a vontade de poder, duas vezes explorada (poder e carisma), nada mais lhe resta senão adotar a “vontade de trabalho” (Bachelard), abandonado o plano das aparências e assumindo a criação do personagem, agora, totalmente reelaborado pela imaginação criadora. O personagem, depois de sua fase carismática, adquire um aspecto universal, revigorado pelo poder da Criação Literária.

O personagem que abandona os pretos no sertão do norte de Minas, procurando retornar ao arraial do Murici, não é o mesmo do início. A imaginação criadora transformou-o, recriou-o a partir das imagens materiais que o sustentaram até ali.

“Para a imaginação dinâmica há, com toda a evidência, além da coisa, a supercoisa, no mesmo estilo em que o ego é dominado por um superego. Esse pedaço de madeira que deixa minha mão indiferente não passa de uma coisa, está mesmo perto de não ser senão o conceito de uma coisa. Mas se minha faca se diverte em entalhá-la, essa mesma madeira é imediatamente mais do que ela mesma, é uma supercoisa, assume nela todas as forças da provocação do mundo resistente, recebe naturalmente todas as metáforas da agressão” (Bachelard).

Na verdade, a começar por Nhô Augusto, todos os personagens roseanos se transformam. Até então, o ficcionista esquadrinhara a substância sertaneja, sob as diretrizes da imaginação formal aliada à imaginação material, sensível às formas e às cores, e só depois da reelaboração do personagem procurou atingir o fundo de sua matéria ficcional. A imaginação formal e a imaginação material, detectadas nas narrativas de Sagarana, abriram as portas secretas que ultrapassam a substância, permitindo a criação de um outro tipo de realidade, administrada unicamente pelo imaginário, substância esta energeticamente ligada ao plano das possibilidades existenciais da imaginação dinâmica.

O Artista renovou a narrativa e renovou-se. O sertão da infância transforma-se no sertão roseano, manipulado pela força criadora das metáforas bem elaboradas. A realidade sertaneja ficou para trás, nas narrativas que antecedem A Hora e Vez de Augusto Matraga. Agora o sertão se universaliza, e mesmo assim não será demais admirar as narrativas anteriores, repletas de um poder encantatório, próprio da imaginação formal, já que são o ponto inicial para a imaginação dinâmica das fases posteriores.


MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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