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quarta-feira, 21 de abril de 2010

1.10 – GUIMARÃES ROSA: O FEITIÇO DE MANGOLÔ


1.10 – GUIMARÃES ROSA: O FEITIÇO DE MANGOLÔ

NEUZA MACHADO


O feitiço de Mangolô provoca a cegueira do narrador e o leva à intuição do ato de criar.

“Então, eu compreendi que a tragédia era negócio meu particular, e que, no meio de tantos olhos, só os meus tinham cegado; e, pois, só para mim as coisas estavam pretas” (“São Marcos”, Sagarana).

Eis o privilégio do Artista Literário dinâmico: entre tantos olhos que nada vislumbram, só os dele passarão por um processo de rara iluminação. As coisas pretas refletirão o infinito. Os paradoxos existem para que se possa refletir sobre eles.

“Mas, quem diz que não seja coisa passageira, e que daqui a instante eu não irei tornar a enxergar? Louvado seja Deus, mais a minha boa Santa Luzia, que cuida dos olhos da gente!... "Santa Luzia passou por aqui, com seu cavalinho comendo capim!..." Santa Luzia passou por... Não, não passa coisa nenhuma. Estou mesmo é envolvido e acuado pela má treva, por um escurão de transmundo, e sem atinar com o que fazer” (“São Marcos”, Sagarana).

A imaginação material ativa, neste segundo segmento da narrativa, procura as experiências estéticas, os devaneios duradouros, a força profunda dos sonhos bem sonhados (Bachelard). Neste novo e poderoso processo (processo de criação), a imaginação vem em primeiro lugar, só depois a forma literária se manifestará, material e dinâmica, revelando as profundas intuições do Artista. Antes, a forma real da natureza aparecia em primeiro lugar, propiciando a imaginação e transformando-a posteriormente em forma literária simplesmente material, não-ativa.

Este novo processo criativo não se peja em apropriar-se de expressões já conceituadas, de versos já conhecidos, de onomatopéias, porque todas estes dados paraliterários fazem parte do imaginário coletivo, e se a imaginação provinda do plano mágico-substancial vem em primeiro lugar, é natural que todas as contribuições sejam válidas no contexto da narração. Portanto, Santa Luzia não passou, e o Artista Literário, em estado de repouso ativado, desmitificou o Mágico.

“Mas, calma... calma... Um minuto só, por esforço. Esperar um pouco, sem nervoso, que para tudo há solução. E, com duas engatinhadas, busco maneira de encostar-me à árvore: cobrir bem a retaguarda, primeira coisa a organizar” (“São Marcos”, Sagarana).

É preciso calma para pelo menos tentar reorganizar o caos que se instalou no contexto narrativo. Mas, o segredo da autêntica criação é exatamente o caos narrativo, que impõe reflexões. O caos dos pensamentos em ebulição impõe a reordenação sim, mas uma nova reordenação, diferente da ordenação do cotidiano.

“Tiro o relógio. Só o tique-taque, claro. Experimento um cigarro — não presta, não tem gosto, porque não posso ver a fumaça. Espera, há alguma coisa... Passos? Não. Vozes? Nem. Alguma coisa é; sinto. Mas, longe, longe... O coração está-me batendo forte. Chamado de ameaça, vaga na forma, mas séria: perigo premente. Capto-o. Sinto-o direto, pessoal. Vem do mato? Vem do sul. Todo o sul é o perigo. Abraço-me com a suinã. O coração ribomba. Quero correr.

Não adianta. Longe, no sul. Que será? "Quem será?"... É meu amigo, o poeta. Os bambús. Os reis, os velhos reis assírio-caldaicos, belos barbaças como reis de baralho, que gostavam de vazar os olhos de milhares de vencidos cativos? São meros mansos fantasmas, agora; são meus. Mas, então, qual será a realidade, perigosa, no sul? Não, não é perigosa. É amiga. Outro chamado. Uma ordem. Enérgica e aliada, profunda, aconselhando resistência:

Guenta o relance, Izé!” (“São Marcos”, Sagarana).

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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