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segunda-feira, 1 de novembro de 2010

QUANDO A VIDA IMITA A ARTE

QUANDO A VIDA IMITA A ARTE

A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA: UM PRENÚNCIO DA QUEDA DO CARISMÁTICO POPULISTA MINEIRO (SÉCULO XX) E A ASCENSÃO DO CARISMÁTICO POPULAR PERNAMBUCANO (SÉCULO XXI)

NEUZA MACHADO

“O bando desfilou em formação espaçada, o chefe no meio. E o chefe — o mais forte e o mais alto de todos, com um lenço azul enrolado no chapéu de couro, com dentes brancos limados em acume, de olhar dominador e tosse rosnada, mas sorriso bonito e mansinho de moça — era o homem mais afamado dos dois sertões do rio: célebre do Jequitinhonha à Serra das Araras, da beira do Jequitaí à Barra do Verde-Grande, do Rio Gavião até aos Montes-Claros, de Carinhanha até Paracatu, maior do que Antônio Dó ou Indalécio; o arranca-toco, o treme-treme, o come brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arranca: Seu Joãozinho Bem-Bem” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).

Na ficção roseana (século XX) há a argumentação reflexiva e questionamento, mas seus personagens (Augusto Matraga e o próprio narrador, ambos herdeiros de sobrenomes notáveis de Minas Gerais), embora degradados, sabem que possuem valores autênticos (pelo menos, o narrador roseano sabe), mas não reencontram a já passada autenticidade que procuram (os falsos valores burgueses que sitiam o sertão mineiro impedem esse reencontro). Por isto, a ruptura entre o personagem-rico herdeiro e o mundo, representados por Matraga e o arraial do Murici (o novo mundo brasileiro que se avizinha), é insuperável. O narrador roseano reconhece esta impossibilidade de reencontro ao colocar seu Joãozinho Bem-Bem no caminho de Nhô Augusto (naquele momento do século XX, o personagem Joãozinho Bem-Bem ainda não poderia ser conceituado como um líder popular). Ele sabe que seu personagem jamais retornará ao arraial e inventa uma poderosa figura, seu Joãozinho, para impedir o retorno (o que acontecerá posteriormente no Brasil do Terceiro Milênio). Seu Joãozinho é o mediador (naquele momento da criação de Guimarães Rosa, ainda um personagem autenticamente ficcional) que se coloca entre o herói e sua procura de autenticidade.

Eis a fala do personagem seu Joãozinho (a fala do líder carismático popular do povo sertanejo oprimido do século XX, do povo que deseja livrar-se do cabresto político do líder carismático populista do sertão mineiro):

“— Mano velho, o senhor gosta de brigar, e entende. Está-se vendo que não viveu sempre aqui nesta grota, capinando roça e cortando lenha... Não quero especular coisa de sua vida p’ra trás, nem se está se escondendo de algum crime. Mas, comigo é que o senhor havia de dar sorte! Quer se amadrinhar com meu povo? Quer vir junto?” (A Hora e Vez de Augusto Matraga)

Nesta fase dos acontecimentos, o personagem Nhô Augusto Matraga já está em vias de abandonar sua face carismática guerreiro-religiosa, reprodutora do carisma populista do rico político sertanejo-mineiro (o “pai” dos pobres “negros samaritanos”), no intuito de assumir a sua condição ficcional — não mais representação da realidade político-sertaneja mineira do século XX, mas criação literária. Entretanto, historicamente, ainda não havia chegado “a hora” de Nhô Augusto Matraga “das Pindaíbas e do Saco-de-Embira”. A criação literária ficcional possui um mecanismo que reproduz a realidade, no entanto (especialmente nesta narrativa de Guimarães Rosa), ultrapassa-a, atingindo a camada mimética caracterizadora de autêntica e reconhecida obra de arte. Assim, posso novamente assegurar: a arte ficcional ímpar de Guimarães Rosa prevê o Futuro do Brasil.

(Texto adaptado para o momento: eleições de 2010. O texto original foi escrito para minha defesa de Mestrado, realizada na UFRJ em março de 1990).

MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

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