CONSCIÊNCIA DA LINGUAGEM: NOVO DINAMISMO PSÍQUICO
NEUZA MACHADO
“Uma imagem literária imitada perde a sua virtude de animação. A literatura deve surpreender. Certamente, as imagens literárias podem explorar imagens fundamentais – e nosso trabalho geral consiste em classificar essas imagens fundamentais –, mas cada uma das imagens que surgem sob a pena de um escritor deve ter a sua diferencial de novidade. Uma imagem literária diz o que nunca será imaginado duas vezes. Pode-se ter algum mérito em recopiar um quadro. Não se terá nenhum em repetir uma imagem literária” (Bachelard).
Em meados do século XX, o escritor mineiro Guimarães Rosa surpreendeu os meios intelectuais brasileiros, valendo-se de uma linguagem fora dos padrões habituais, para desenvolver a sua inigualável arte literária. Naquele momento, Guimarães Rosa conseguiu a sua diferencial de novidade, recriando a antiga técnica de contar estórias exemplares à moda do sertão de Minas, mas retiradas criativamente de seu imaginário particular, singularíssimo. Graças a essa diferente forma de narrar, extraiu das recordações íntimas o aspecto altivo do homem sertanejo, sustentado pelo primitivismo de uma existência alheada dos valores modernos. O escritor, de origem sertaneja — rejeitando os valores da modernidade, as regras linguísticas formais, as imagens mascaradas (limitadas), e buscando o linguajar primordial (provocador), a imaginação material (reprodutora) aliada à imaginação criadora (dinâmica ) ―, tornou-se um ativo modelador de um universo diferente. Não quis apenas contemplar o sertão da infância, recriou-o, domou a matéria terra e venceu a natureza.
Nas recordações da infância, momentos de pura inspiração o impelem à modelação de trechos narrativos de alta criatividade. Por exemplo, reconstituindo as façanhas infantis de um grupo de crianças, em “A partida do audaz navegante” (Primeiras Estórias), propicia-nos um retorno ao regaço materno, seja qual for a significação que queiramos dar a esta expressão: retorno ao útero materno, retorno aos braços carinhosos da mãe, retorno às origens, ou, mesmo, retomada dos valores puros da terra/sertão.
“Afastar a criança da cozinha é condená-la a um exílio que a aparta dos sonhos que nunca conhecerá. Os valores oníricos dos alimentos ativam-se ao se acompanhar a preparação. Quando estudarmos os sonhos da casa natal, veremos a persistência dos sonhos da cozinha. Esses sonhos mergulham num feliz arcaísmo. Feliz o homem que, em criança, “rodou em volta” da dona da casa” (Gaston Bachelard)
Nos sonhos da casa natal, terra, chuva, cozinha e lama se misturam para realçar a figura materna. Num meio repleto de primitividade, mamãe é a mais bela, a melhor, e “cuida com orgulhos e olhares as três meninas e o menino” (op. cit.).
No início, o elemento fogo se sobressai para o cozimento da massa formada pela terra e pela água. Na cozinha das recordações, os alimentos se tornam saborosos, e a doce voz materna também se transforma em alimento, nutrindo a criança, oferecendo-lhe condições de desenvolver o corpo e os sonhos.
Esta narrativa, oriunda dos sonhos dilatados do amanhecer - dos devaneios da vontade de um sonhador-modelador que sabe trabalhar sua criatividade ficcional -, é uma sensível massa de palavras bem dosadas. O estilo inconfundível de Guimarães Rosa se faz presente nesta aparentemente simples narrativa, mas, em suas camadas ocultas há uma profunda natureza complexa. “As verdadeiras fontes do estilo são fontes oníricas. Um estilo pessoal é o próprio sonho do ser” (Bachelard). Sob a proteção do olhar infantil, o inspiradíssimo narrador roseano acompanha os movimentos de mamãe, transforma Pele - a irmã - em uma criança diligentil, além de dar forma a uma imagem ímpar: Ciganinha - a outra irmã - lendo um livro sem virar a página. Percebe-se, neste discurso inovador, os valores imaginários da criança em seu mais alto grau. A massa perfeita encontrou seu elemento individualizador, pode transformar o audaz navegante e seu navio - núcleo de uma sub-estória dentro da narrativa - numa “coisa vacum, atamanhada, embatumada, semi-ressequida, obra pastoril no chão de limugem, e às pontas dos capins-chato deixado” (op. cit.). Um cogumelo branco se transforma no audaz navegante, bamboleando em cima da tal coisa - o navio -, que está prestes a ser tragada pela enchente produzida pela chuva anterior.
Inspirado pela linguagem inerente à criança, o narrador roseano remodela a linguagem ficcional, enriquecendo-a com as recordações da infância. A narrativa surpreende e encanta, porque o leitor refaz também os primórdios de seu próprio passado. Todas as mamães se transformam em fadas, surgindo inesperadamente - de contra-flor -, para socorrerem seus filhinhos.
“No sonho, as palavras reencontram amiúde o seu sentido antropomórfico profundo. Aliás, pode-se observar que a modelagem inconsciente não é coisista; é animalista. A criança entregue a si mesma modela a galinha ou o coelho. Cria vida” (Bachelard).
(neumac@oi.com.br)
Nenhum comentário:
Postar um comentário