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quinta-feira, 4 de março de 2010

SERTÃO ROSEANO: PROSA E MATÉRIA POÉTICA




SERTÃO ROSEANO: PROSA E MATÉRIA POÉTICA

NEUZA MACHADO



O Artista manipula o resgatar dos sentimentos que saem de si. Por isto, a superabundância de símbolos, de imagens, invenção de novas palavras, retomada de valores léxicos que não condizem com as normas estabelecidas. O passado acabado é resgatado pelo presente inacabado sem sofrer desgastes, emanando uma luminosidade gerada pelo poder das líricas evocações.

“Não sou romancista; sou um contista de contos críticos. Meus romances e ciclos de romances são na realidade contos nos quais se unem a ficção poética e a realidade”. (Guimarães Rosa)

Prosa repleta de Poesia, porque "a poesia é uma metafísica instantânea” (Bachelard). Somente a poesia transcende os limites da realidade vivida. Prosa que almeja recuperar segredos poéticos, seguindo o tempo e, ao mesmo tempo, imobilizando-o por meio do devaneio criador. Não há somente métodos e provas que ressaltem o aspecto ficcional; há muito mais, porque há a "necessidade de um prelúdio de silêncio” (Bachelard), sustentando a poética do narrador. A narrativa encadeada não revelaria as minúcias de um lugar idealizado; o narrador, valendo-se da ficção poética, impede que se duvide da veracidade dessas lembranças, impõe um Sertão imaculado, localizado nas impressões da infância, guardando segredo absoluto das imperfeições que existem no sertão mineiro, já deteriorado pelos males da modernidade.

Por estas razões, os pássaros voam permanentemente dentro do devaneio criador do Artista, enquanto seu narrador faz longos questionamentos verticalizantes. Os pássaros voando estão dentro do tempo psicológico e perceptivo do tempo do pensamento, e as perguntas sem sentido narrativo são na verdade palavras ocas, reveladoras de "instantes poéticos", que "fazem calar a prosa e os trinados que deixariam na alma do leitor uma continuidade de pensamento ou de murmúrio” (Bachelard). Não há padrões narrativos que impeçam o decalque no texto desse tempo interior e diferente. A memória é insuficiente para resgatar velhos valores sertanejos, e há vazios imensos, vazios necessitando de preenchimentos que sustentem a verdade das recordações. Os pássaros da casa-Sertão voam permanentemente dentro das lembranças do Artista, fazem alaridos e brincadeiras, porque as sensações felizes da infância impõem continuidade ao tempo imobilizado do passado, incoerentemente móvel dentro da imobilidade do instante poético. Não há métodos e provas, porque o Artista destruiu as ligações com a objetividade da História, para construir uma narrativa poética e complexa, presa a um tempo que se encontra dentro de uma idealizada subjetividade. Tempo detido, tempo que não segue a medida, tempo vertical, segundo as concepções filosóficas bachelardianas, mas também tempo fluídico e abstrato e, paradoxalmente, em permanente movimento.

“As aventuras não têm tempo, não têm princípio nem fim. E meus livros são aventuras; para mim, são minha maior aventura. Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito; o momento não conta”. (Guimarães Rosa)

O Artista ficcional vive a aventura de vagar no infinito, dentro da ilimitação da criatividade ficcional e matéria poética. Entre o mundo objetivo e seu universo interiorizado, há a força da arte de escrever, exibindo palpavelmente o hiato criador que se encontra entre a aparência e a essência de uma realidade idealizada. Sua meta, unindo à narrativa linear o instante poético, é fixar a eternidade da arte num texto que, em princípio, apenas reproduziria o sertão. Para um escritor que vive no infinito e o momento não conta é fácil transformar o sertão em ficção poética. Quem vive no infinito são os Poetas.

“O instante poético é, pois, necessariamente complexo: emociona, prova — convida, consola —, é espantoso e familiar. O instante poético é essencialmente uma relação harmônica entre dois contrários. No instante apaixonado do poeta existe sempre um pouco de razão; na recusa racional permanece sempre um pouco de paixão. As antíteses sucessivas já agradam ao poeta. Mas para o arroubo, para o êxtase, é preciso que as antíteses se contraiam em ambivalência. Surge então o instante poético... No mínimo, o instante poético é a consciência de uma ambivalência. Porém é mais: é uma ambivalência excitada, ativa, dinâmica. O instante poético obriga o ser a valorizar ou a desvalorizar. No instante poético o ser sobe ou desce, sem aceitar o tempo do mundo, que reduziria a ambivalência à antítese, o simultâneo ao sucessivo”. (Bachelard)

Os paradoxos expressam o instante poético de quem narra, aquele que um dia disse ao crítico Lorenz:

“Como romancista tento o impossível. Gostaria de ser objetivo, e ao mesmo tempo me olhar a mim mesmo com os olhos de estranhos. Não sei se isso é possível, mas odeio a intimidade”. (Guimarães Rosa)

Os dois aspectos do romancista: os paradoxos que caracterizam o caráter ambivalente do Poeta. Sua ficção poética valoriza o sertão mineiro e desvaloriza a modernidade. O escritor não está comprometido com seu momento histórico, no entanto, é íntimo desse tempo, ao vivenciá-lo em seu cotidiano; mesmo assim, não pensa ideologicamente, de acordo com os padrões modernos, porque sua ideologia é autenticamente sertaneja.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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