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domingo, 7 de março de 2010

SERTÃO: CENÁRIO FICCIONAL X VERDADEIRA REPRESENTAÇÃO DO ARTISTA


SERTÃO: CENÁRIO FICCIONAL x VERDADEIRA REPRESENTAÇÃO DO ARTISTA

NEUZA MACHADO



Na Introdução de A Representação do Eu na Vida Cotidiana, Erving Goffman, teorizando sobre o ponto de vista do grupo em relação ao indivíduo, informa que seu objetivo é definir a interação (influência) face a face, "a influência recíproca dos indivíduos sobre as ações uns dos outros, quando em presença física imediata". Diz ainda que "uma interação pode ser definida como toda interação que ocorre em qualquer ocasião, quando, num conjunto de indivíduos, uns se encontram na presença imediata de outros". Goffman realça o objetivo já no final da Introdução, depois de desenvolvê-lo implicitamente ao longo do conteúdo introdutório.

Antes, já informara sobre a atuação do indivíduo na presença de outros e que os outros, ao se aproximarem do indivíduo, procuram saber o máximo a seu respeito, interesses gerais, tais como se possui uma boa situação sócio-econômica, o que pensa de si e dos que o rodeiam, se é confiável. Essas informações, segundo o autor, definem a situação do indivíduo perante os outros e dos outros ante o indivíduo. É nesse momento que a interação será definida. Caberá ao indivíduo, que, no momento, se encontra sob suspeita, influenciar positivamente ou não o grupo que o examina. De acordo com a atitude do examinado, os examinadores se convencerão ou não da validade dos esforços pessoais para se fazer admirado ou respeitado. A impressão positiva é importante nesse momento de influência face a face, porque é exatamente nesse momento que os outros confiarão na informação que o sujeito procura transmitir. Portanto, expressão e impressão do e sobre o indivíduo são fatores prioritários para que o grupo infira positivamente e confie nele. Para que receba confiança, o examinado terá de expressar-se convincentemente, mesmo que, no fundo, transmita informações falsas. A influência face a face necessita de expressões que convençam. O sujeito emitirá tais expressões, mesmo que sejam falsas. Tais dissimulações são atitudes típicas do ator, que procura se utilizar das expressões que emite. A expressão transmitida se vale da comunicação, e esta se faz quando o indivíduo se encontra na presença de outros, transmitindo confiança ou rejeição, de acordo com as deduções do grupo. Procurando explicar melhor, Goffman divide a expressividade do indivíduo em duas categorias opostas: expressão que transmite e expressão que emite. Dentro da categoria da expressão que emite, estariam as dissimulações próprias do ator; na categoria da expressão transmitida, estariam as fraudes, abrangendo os símbolos verbais, usados propositadamente no intuito de transmitir impressões falsas.

Goffman, num segundo momento da Introdução, muda o pólo de concentração de sua tese, deslocando-se para o ponto de vista do indivíduo. Antes, teorizara sobre o ponto de vista do grupo. Por este ângulo, o indivíduo que se encontra diante do grupo, examinado pelo grupo, "pode desejar que pensem muito bem dele, ou que pensem estar ele pensando muito bem deles, ou que não cheguem a ter uma impressão definida"; pode trapacear, confundir, induzi-los a erro. Conscientemente, o sujeito direciona as atitudes do grupo em relação a si mesmo, manipula as inferências do grupo, demonstra possuir grande influência ante os outros e, consequentemente, terá aos poucos como demonstrar poder.

Falando ainda sobre expressões transmitidas e expressões emitidas, Goffman procura delimitar o seu trabalho, informando que se ocupará primordialmente com as expressões emitidas, ou seja, a atitude do indivíduo-ator diante de um grupo-platéia. Exemplificando suas idéias, cita um incidente romanceado, um episódio sobre um inglês em férias em uma praia, na Espanha. Narra as atitudes de Preedy (um indivíduo-ator e suas expressões emitidas) para se fazer notar, por meio de vários rituais, como um passeio pela praia que virara corrida e mergulho direto na água, a forma de nadar que consistia num apelo para ser visto, e outras ações ritualísticas, visando impressões múltiplas do grupo-platéia. Demonstra que as impressões variam e nem sempre coincidem com a esperada pelo indivíduo. Às vezes ele consegue projetar uma boa impressão e ser compreendido, às vezes não.

Muitos exemplos são oferecidos na Introdução de Goffman, mas o que fica claro é a idéia de que o processo de comunicação do indivíduo é semelhante ao desempenho do ator: há encobrimentos e descobrimentos, revelações falsas e redescobertas, e, como ator, o sujeito manipula o próprio comportamento, transmite espontaneidade e segurança, observa as reações que desperta. Nesse momento de observação, levará vantagem sobre o ator, influenciando e dominando os que se encontram em sua volta. Destaca também a possibilidade de posteriores contradições, em relação às posições iniciais dos diversos participantes. Durante o percurso da influência, poderão desenvolver-se situações embaraçosas, que tornarão o indivíduo-ator desacreditado diante do grupo-platéia, mesmo sendo ele, nesse momento, o indutor da análise. Quando tal situação ocorre, a "interação face a face entra em colapso". Ao falar de projeção, realça o fato de que "não devemos passar por cima do fato essencial de que qualquer definição projetada da situação tem também um caráter próprio", ou seja, qualquer definição projetada procura ressaltar o caráter moral das projeções.

“A sociedade está organizada tendo por base o princípio de que qualquer indivíduo que possua certas características sociais tem o direito moral de esperar que os outros o valorizem e o tratem de maneira adequada” (Erving Goffman).

Evidentemente, esse indivíduo não se considera pequeno dentro da escala social, porque a própria sociedade já o avaliou e o aceitou. É correto salientar que há vários graus de aceitabilidade dentro da escala social. Mesmo sem saber em que patamar se encontra, se ele já se considera melhor, e a sociedade o acolhe, certamente, graças à organização social, esse indivíduo espera que o valorizem e o tratem de maneira especial.

Há, ainda, o indivíduo que projeta a impressão de possuir certas características sociais. Esse indivíduo terá de demonstrar possuir de fato tais características, se quiser conquistar o respeito do grupo. Penso que, mesmo possuindo tais atributos, mesmo tentando demonstrar ser o que é, se não convencer o grupo, jamais será aceito. Se ele deseja ser o que realmente é, sem falsos atributos, será tratado de acordo com o que projeta sobre si mesmo, ou seja, não será valorizado, porque o grupo não o aceitará em seu despojamento. A sociedade está organizada para projetar falsos valores, e os indivíduos que a compõem são guiados no sentido de os projetarem também.

Para evitar tais embaraços, há práticas preventivas. Dentro dessa categoria, há as práticas corretivas, que são empregadas no sentido de corrigir as "ocorrências desabonadoras que não tenham sido evitadas". Quando isto acontece, a prática corretiva passa a ser denominada prática defensiva; o sujeito da ação se defende, procurando corrigir a ocorrência desabonadora. Há também a chamada prática protetora. Nesse caso, um outro sujeito, participante do grupo, procura proteger o indivíduo, resguardando-o de uma possível má impressão.

Goffman fecha suas teorizações, demonstrando que, para evitar possíveis rupturas, pré-existem nos grupos sociais "brincadeiras e jogos nos quais são intencionalmente arquitetadas situações embaraçosas que não devem ser levadas a sério". Há um estoque de fantasias e contos, cujo teor serve de aviso, procurando alertar os indivíduos, persuadindo-os a serem modestos em suas pretensões.

Como já observei no início, Goffman só realça seu objetivo de trabalho no final da Introdução, na página vinte e três. Depois de desenvolver implicitamente tal objetivo, ou seja, todas essas questões que foram recuperadas até agora, ele define claramente a sua matéria teórica. A interação face a face é a influência recíproca dos indivíduos sobre as ações uns dos outros, é o encontro, ou por outra, é o embate que se faz presente, quando dois ou mais indivíduos se encontram face a face.

Desempenho, para Goffman, é definido "como toda atividade de um determinado participante, em dada ocasião, que sirva para influenciar qualquer um dos participantes". Assim, desempenho é a representação propriamente dita. É a representação do eu na vida cotidiana. É o indivíduo procurando pôr em prática uma determinada atuação diante de uma determinada platéia. É o indivíduo representando um papel que o faça ser aceito pelo grupo, que o faça obter impressões positivas desse grupo, que o observa e julga.

No capítulo dedicado às representações, ou seja, o papel que o indivíduo representa diante de um grupo, Goffman compara tal atitude com a representação do ator frente à platéia. Fala de fachadas, dramatizações, idealizações, representações falsas, mistificações, realidade e artifícios.

Minha propedeutica é sobre o Artista e o texto literário; evidentemente, não pretendo analisar o comportamento humano dentro de uma perspectiva antropológica ou social, detenho-me no comportamento dos personagens ficcionais, refletores de atitudes humanas e, muito especialmente, intento observar o comportamento de um determinado personagem da narrativa A Hora e Vez de Augusto Matraga: o narrador. O narrador aqui é o meu objeto de análise (ou sujeito) e, segundo minhas teorizações, atua com muito poder dentro da narrativa, delegando ao personagem Augusto Matraga a função de coadjuvante. Utilizando-me das idéias de Goffman, quero ressaltar que esta aproximação não é aleatória, se penso que efetivamente o narrador roseano possui uma dupla feição: é um ser social, na dialética da comunhão e do conflito com seu espaço substancial, portanto, ser histórico, graças a sua função de outro eu do Artista e, ao mesmo tempo, participante ativo da realidade ficcional, participante de um determinado núcleo social, envolvido na movimentação das seqüências evolutivas desse mundo. O narrador, usando os postulados de Goffman, funcionaria como máscara, encobrindo a verdadeira face do Artista, aquela que se localiza na infância, na qual se encontram as bases de sua estrutura de vida. O narrador como mediador de duas realidades, ansioso por não transgredir a perfeição do sertão, observando-o com os olhos da recordação, mas impotente em relação a si mesmo, ser fragmentado que é, espectador de um mundo decadente, testemunha da degradação da sociedade burguesa, ainda que sertaneja.

Não estou, neste exame teórico-crítico da matéria ficcional de Guimarães Rosa, analisando o comportamento humano, mas não aceito furtar-me a analisar, hipoteticamente, o comportamento do Artista Literário, pelo prisma de seu eu ficcional. Penso no Artista como um cidadão contemporâneo, viajado, culto, cosmopolita, todos os atributos que o fazem respeitado diante de um determinado núcleo social, projetando uma boa impressão, manipulando as inferências do grupo, demonstrando possuir grande influência ante os outros, visto que alcançou altas honrarias na escala social, graças ao desempenho de seus diversos talentos: médico, soldado, diplomata. Entretanto, esse Artista é nato de um mundo não valorizado pela sociedade elitista; suas origens estão no sertão mineiro (sertão ainda rude); em sua concretude, ainda não-poetizado. Há colisão, choque, conflito, diferentes forças que atuam em seu próprio íntimo, enquanto singularidade ativa do seu núcleo social, inseparável da ação do mundo que o cerca. Esse Artista de criativos textos ficcionais, enquanto indivíduo, conhece o papel que representa diante da sociedade; sua inteligência o direciona no sentido de que o grupo o leve a sério em sua atuação. Mas, e o sertão da infância, localizado em suas recordações mais importantes? E o Sertão, casa íntima do Artista? Aquele Sertão que não se esquece, aquele Sertão da Entrevista ao crítico Lorenz, em que o sertanejo/citadino Guimarães Rosa afirma que leva o sertão dentro dele e que o mundo em que vive é também o sertão.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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