DE VOLTA PARA O PASSADO: ANTONINHA PEREIRA DE JESUS - A INESQUECÍVEL “TUNINHA” DE ANTOINZINHO PAPAI
NEUZA MACHADO
O mesmo acontecia com os seus inúmeros irmãos – homens e mulheres. Meus tios e tias só se referiam aos pais pelos apelidos familiares: “o Zeca”, “a Ninha”. Quando os irmãos se reuniam, era muito interessante ouvi-los a se reportarem aos pais com intimidade e carinho (uma atitude filial contrária aos ditames sócio-familiares da época). Me lembro sempre de meu tio Olavo ou de meu tio Álvaro conversando com papai: “– Você se lembra, Compadre Toinzinho, do que aconteceu com o Zeca, naquele domingo da Quaresma, lá no Choro?” E o meu tio continuava: “– A Ninha quase morreu de aflição! Tá lembrado, Mano?” “– É! É verdade! A Ninha ficou muito preocupada, Compadre Álvaro!” (Os compadrios eram respeitados, mesmo entre irmãos). E o assunto continuava indefinidamente, tomando às vezes rumos diversos, entrelaçamento de recordações díspares. E por aí em diante.
Mas, o assunto de hoje, refere-se a minha avó Antoninha.
A HISTÓRIA DE ANTÔNIO
João Pereira, vulgo Barba de Argolão, era português, casado com uma mestiça, filha de índio com negro, por nome Antônia, mas era chamada de Antoninha. Desse matrimônio nasceram sete filhos, sendo quatro homens e três mulheres. Nomes dos homens: Joaquim, Sebastião, João e Manuel. Nomes das mulheres: Joana, Antônia e Luiza.
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Joaquim Pereira da Cunha, nome completo, casado com Maria Brasilina de Jesus. Tiveram nove filhos, sendo seis homens e três mulheres. Nome dos homens: João, Sebastião, Joantônio, Luís, Raimundo e Manuel. Nome das mulheres: Antônia, que tinha apelido Antoninha (minha mãe), Olívia e Corina. João, sendo o filho mais velho, casou-se com Cecília e foi morar em Mutum, um lugar que fica ao Norte de Minas. Sebastião casou-se com Maria, apelidada Cota. Joãntônio casou-se com Maria, viúva de Manoel Lopes. Ela morreu, e ele casou-se pela segunda vez com Augusta, viúva de Antônio Amorim. Luís casou-se com Floripes. Raimundo casou-se com Antoninha, e Manoel casou-se com Conceição. A filha Antoninha casou-se com José de Souza Costa, apelido Zeca (estes foram os meus pais). Olívia casou-se com Marcolino. Corina casou-se com Antônio, apelidado Antônio Carabineiro. Estes são os nomes dos filhos e filhas de Joaquim Pereira da Cunha e de Maria Brasilina de Jesus (meus avós por parte materna).
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José de Souza Costa e Antônia Pereira de Jesus tiveram doze filhos. O mais velho, Olavo; (2o) Álvaro; (3o) Maria; (4o) Eurico [falecido, ainda jovem, no Hospital Psiquiátrico da Cidade Barbacena, no Estado de Minas Gerais]; (5o) Malvina; (6o) Antônio [que é o mesmo que escreve esta história verídica]; (7o) Almezinda; (8o) Elmira; (9o) Raimunda e Regina, gêmeas; (10o) Clemilda; e (11o) Enedina.
A casa do Zeca, meu pai, era muito frequentada por toda a vizinhança. Era uma casa de muita harmonia. (Desde já esclareço que todos os filhos o chamavam pelo apelido, assim como também à nossa mãe Antoninha. Esclareço também que, apesar da aparente intimidade, chamando-os pelos apelidos, nós, filhos, os respeitávamos, pois eles eram muito severos). Os quatro filhos homens tocavam instrumentos de cordas. Ainda vinham alguns colegas trazendo seus instrumentos, para fazerem parte de nossa orquestra. O tio Marcolino era o vizinho mais perto, a casa dele também era muito harmoniosa. Ele tinha sanfona de oito baixos e tocava muito bem. Os filhos de tio Marcolino tocavam sanfona e cavaquinho. O pai de tio Marcolino, Manoel de Souza, tocava viola e cantava as músicas de batucadas dos negros chamadas cateretês. Era uma casa cheia. Em certas noites, nós nos reuníamos para formar uma só orquestra. Isto foi na década de 1920 a 1930. Fazíamos baile, ora na casa de um, ora na casa de outro. Mas, primeiro, tínhamos que rezar ladainha e terço. Todos eram muito religiosos. A reza era rezada na sala de dentro, e a dança era na sala de fora. Durante a noite, o povo dançava na mais perfeita ordem, e, quando queria tomar café, comer broa de fubá, biscoito de polvilho de mandioca, tinha que ir à cozinha, e, lá, tinha sempre café e broa de fubá de milho à vontade de todos.
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Meu pai sempre vinha à casa de meu avô Joaquim Pereira, para ver minha mãe. E, não demorou muito tempo, minha mãe foi pedida em casamento pelo meu pai. O pedido foi aceito pelo meu avô Joaquim, que ainda não estava doente da cabeça, Meu avô Joaquim e minha avó Maria Brasilina, pais de minha mãe, marcaram o casamento para o mês de janeiro de 1899, quase no final do século XIX. Meu pai e minha mãe eram casados só no eclesiástico, porque, naquela época, não existia casamento no civil. Foram pais de doze filhos, todos registrados como filhos naturais. Meu pai, por várias vezes, quis legitimar os filhos, mas minha mãe não concordava em tornar a casar. Por isso, ficamos todos como filhos naturais. Meu pai tratava os filhos com muito respeito, e minha mãe não era assim. Meu pai fumava cigarro de palha de milho, mas nunca deu licença de filho fumar. Teve uma noite que ele foi ao meu quarto, quando eu já estava deitado, fumando um cigarro muito distraído. Quando ele entrou e falou comigo, eu estava com a boca cheia de fumaça, mas não adiantou nada, a fumaça saiu pelas narinas. Isto, eu já estava com vinte e um anos. Já minha mãe era mais camarada com os filhos. Minha mãe também fumava, e dava cigarro aos filhos, e quando ela não tinha fumo, pedia aos filhos. Minha mãe era costureira, fazia roupa para homem e para mulher, mas o que ela gostava era de fazer roupa de homem. Tinha uma máquina Singer de sete gavetas, sendo três de cada lado e uma de frente com três repartições. Antoninha, minha mãe, tinha uma grande freguesia, vinha gente de longe trazendo pano de brim amarelo para fazer terno. Era o que se usava mais para homem. As mulheres traziam fazendas de tricoline, chita e até seda. Minha mãe tinha o maior cuidado em fazer as roupas. Primeiro tinha que molhar o pano, porque tinha pano que encolhia. Muitas das vezes, ela queria recusar algumas costuras, porque já tinha demais pra ela fazer, mas os fregueses imploravam, até que ela aceitava, mas sem compromisso. Isso era em ocasiões de festas, e, assim, ela ficava sentada em um topo de madeira roliço. O dia era pouco pra ela trabalhar, inteirava com a noite, das quatro horas da madrugada até às dez horas da noite. Fora dessas ocasiões, não tinha tanto serviço, mas ela costurava diariamente, não fazia outra coisa, até a comida ia pra ela na máquina. Minha mãe trabalhava cantando, pois gostava de música, e sempre dizia que tinha vontade de ter um filho músico. Um dia chegou em nossa casa Antônio Vieira de Barros, muito amigo nosso, e me fez convite para fazer parte em um conjunto de alunos, aos quais ele estava ensinando música. Eu dizia que não estava interessado em aprender música, que a minha vida já tinha mudado, pois eu já estava casado e não podia assumir outros compromissos. Mas ele sempre insistindo comigo, que não me cobrava nada, era só duas vezes por semana de aula, o estudo era de noite. Aí, minha mãe entrou no assunto e disse-me: “– Aceita este convite. Eu sempre tive vontade que um filho meu aprendesse música e, hoje, surgiu a oportunidade”. Com esse pedido que minha mãe me fez, eu comecei a estudar música, aos vinte e seis anos de idade. As aulas eram em casa do professor Vieira, em um Arraial distante, três quilômetros de distância. Era só quartas e sábados da semana, mas mesmo assim era um sacrifício, pois eu trabalhava na roça, e, quando chegava o dia de aula, mesmo cansado de puxar a enxada o dia todo, tinha que caminhar a pé três quilômetros, ida e volta.
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Luiz de Sales era amigo de seus amigos. Recordo-me de uma vez que minha mãe estava muito mal, dois meses de cama, sofrendo uma dor no peito, que impedia a respiração. Parecia mesmo que ia morrer, pois já não alimentava, só gemendo, dia e noite, Como meu pai era compadre e amigo de Luiz de Sales, recebeu dele, nesta ocasião, uma valiosa ajuda. Meu pai ia passando, em frente à casa de Luiz de Sales, para ir à farmácia, para dar informação da doença de minha mãe ao farmacêutico, e, também, apanhar remédio para a dor de peito que ela sentia, aí, o senhor Luiz de Sales perguntou a meu pai como ia passando minha mãe. Meu pai respondeu que minha mãe não estava bem, e que ele ia até à farmácia, para dar informação ao farmacêutico que estava tratando de minha mãe. Para nossa felicidade, naquele dia, estavam os políticos hospedados em casa de do senhor Luiz de Sales, e, aí, o senhor Luiz disse a meu pai: “ – Compadre Zeca, volta pra sua casa e põe a comadre Antoninha no quarto da sala, que eu vou levar o Doutor Waldemar Soares, para fazer um exame na comadre. Meu pai, naquele mesmo instante, voltou pra casa e fez conforme o senhor Luiz de Sales mandara. Com menos de duas horas, o senhor Luiz de Sales e o doutor Waldemar Soares estavam em nossa casa, pois a distância não era longe. Quando eles chegaram em nossa casa, o doutor Waldemar examinou minha mãe e disse pra meu pai: “– Eu vou fazer uma experiência sobre este mal, que está nesta doente. Se for água, eu curo ela aqui mesmo, mas, se for pus, o senhor terá que levar ela até Carangola. Aí, o doutor mandou minha mãe deitar-se de bruço, fincou uma agulha nas costas de minha mãe, e sugou um líquido amarelado. Não era pus. Ele disse a meu pai: “– Não é preciso levar ela a Carangola. Aqui mesmo, eu curo ela”. Meu pai disse ao doutor Waldemar, assim: “– Doutor, amanhã eu vou buscar o remédio”. Isto, já era quatro horas da tarde. E o doutor disse pra meu pai: “– O senhor vai é hoje, não pode deixar pra amanhã”. Meu pai tinha um cavalo de confiança, que podia viajar dia e noite, e o cavalo não afrouxava. Meu pai montou ao cavalo às seis horas da tarde e viajou até Carangola. Antes do amanhecer, apanhou o remédio que o doutor tinha receitado, entre meio-dia a uma hora, minha mãe já estava tomando o remédio. No decorrer de três dias, minha mãe já estava bem melhor, a dor já tinha desaparecido. Ela ainda estava bem fraca, mas, com o espaço de uns vinte dias, meu pai levou a informação de seu restabelecimento ao doutor Waldemar, que receitou fortificante pra ela tomar. E, ela ficou curada de um mal, que o doutor deu o nome de pleuris, água no pulmão. O mais importante de tudo isto foi a cura de minha mãe, mas, houve um outro fato também importante. O meu pai só pagou os remédios, o doutor nada cobrou do exame e da viagem, porque era época de acontecimento político. Quem viu o Arraial do Choro, naquela época, e o vê hoje em dia abandonado, sente até vontade de chorar, assim como seu próprio nome, dado pelos fundadores do lugar: Choro.
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Passamos a falar agora sobre a minha infância. Antigamente, se ouvia dos mais velhos um ditado: “Quem nasce pra dez réis, não vai a vintém!” Eu nasci com este destino. Desde pequeno, as coisas, para mim, não se concretizam. Quando eu penso que vou realizar algum negócio, aquilo desmancha como uma bolha de sabão. Isto já vem desde a minha infância, a começar pelo o meu nascimento. Minha mãe dizia que, quando eu estava para nascer, ela preveniu a tia Antoninha, a irmã de meu avô Joaquim, que era também tia de minha mãe, para que ela ficasse de sobreaviso e viesse ajudá-la. No dia 18 de fevereiro de 1910, às 6 horas da tarde, minha mãe começou a sofrer as dores do parto. Ela disse ao meu pai: “– Vai buscar a tia Antoninha, porque eu estou passando mal.” Meu pai saiu correndo. A tia não morava longe, morava a uma distância de um quilômetro, mais ou menos. Mas, antes da tia chegar, eu já tinha nascido, só com a minha mãe no quarto. Dizia a minha mãe que, antes um pouquinho de meu pai chegar, ela viu cair uma cabeça de alho na beira da cama. Então, ela pensou que fora alguém que jogara, por brincadeira. Pensando assim, esperou o meu pai chegar com a tia Antoninha. Depois de tudo controlado, já com o quarto em ordem, ela disse ao meu pai: “– Eu vi cair uma cabeça de alho, aqui dentro do quarto, e rolar pra debaixo da cama.” Meu pai olhou e não viu nada, e disse pra minha mãe: “– Foi impressão sua!’ Ela atestava: “– Não! Eu vi cair!” Mas, o certo é que não tinha alho nenhum debaixo da cama. Quando eu atingi a idade de um ano, já andando corretamente, sofri o sarampo, que me paralisou as pernas, impedindo-me de andar. E contava a minha mãe, que eu fiquei tão mal, que eles não acreditavam que eu pudesse sobreviver. E teve um dia que ela disse ao meu pai: “– Vamos levar o Antônio para o padrinho abençoar ele antes de morrer.” E assim fizeram. O padrinho era nosso vizinho, por nome Jove Fortunato, e a madrinha se chamava Marcolina Leandro. Assim que chegaram em casa do padrinho Jove, e disseram que tinham ido em casa deles somente para que me abençoassem, o padrinho, muito inteligente, disse à madrinha: “– Vai até a horta, apanhe hortelã, e ferve com leite”. Assim, a madrinha fez. Depois de fervido o leite, ele disse a minha mãe e a meu pai: “– Se ele beber e suar, ele não vai morrer!” Dizia a minha mãe que tudo de beber que punham em minha boca, eu bebia com gana. Depois que o chá esfriou um pouco, misturado com o leite, me deram para beber. E o padrinho disse a madrinha: “– Deita ele na cama e abafa, até ele suar.” Dizia minha mãe que, em poucos minutos, eu comecei com sinais de suor. Ele disse pra minha mãe: “– Comadre, seu menino não vai morrer, ele precisava era de um suador. Deixa ele aqui em casa, por uns dias, que eu vou cuidar dele.” E, assim, meu pai e minha mãe voltaram para casa, e me deixaram com os padrinhos. Eles cuidaram de mim, até eu ficar bem forte, e me entregaram a meus pais. Mas, aquele uso de beber leite com hortelã não saiu de mim. Eu fiquei com aquele costume. Se não tivesse hortelã no leite, eu não bebia. Eu já estava bem grande e só tomava leite com hortelã.
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