ARRAS POR FORO DE ESPANHA: A QUESTÃO DO HERÓI ROMÂNTICO
NEUZA MACHADO
Em “Arras por foro de Espanha”, Herculano não foge à regra. É uma narrativa histórica, repleta das características intrínsecas do romantismo português do século XIX, principalmente a característica da retomada de valores medievais, e, por tal razão, ambientada em pleno século XIV, assim como “O Bispo Negro”, que se ambienta no século XII.
Para um leitor menos exigente, isto é o que fica de concreto em relação à história recontada ficcionalmente por Alexandre Herculano. Mas, na verdade, ao ler-se uma obra ficcional, principalmente quando esta for considerada de primeiríssima qualidade, o leitor analista e/ou intérprete não deverá fixar-se apenas em palavras e orações, e, muito menos, decorar o conteúdo escrito; o que deverá permanecer em seu intelecto é a compreensão do texto analisado, ou seja, aquilo que o escritor deixou latente nas entrelinhas da camada visível de seu texto literário. Por exemplo, em uma análise mais profunda, aliada à interpretação fenomenológica, pode-se captar o invisível do texto-arte, isto é, aquilo que só é detectável com o auxílio do entendimento.
Em verdade, os personagens em questão existiram, fizeram parte da História da nação portuguesa. Mas, graças ao poder narrativo de Herculano, passam a existir na mente do leitor por meio do plano metafísico. O caráter diabólico de Dona Leonor adquire uma faceta irreal. Alguns leitores custam a aceitar (outros já aceitam de imediato) o fato de ter existido, em realidade, uma mulher tão pérfida e ambiciosa, sem um mínimo rasgo de bondade. Esta inaceitabilidade gera a dúvida, a dúvida gera a compreensão, a compreensão gera a modificação. O que isto quer dizer? Quer dizer que começam a aparecer perguntas e reflexões, de acordo com a sensibilidade ou de acordo com o conhecimento de cada um. Assim, um determinado leitor neófito poderá dizer: “Que mulher perversa, má, interesseira, sem princípios!” Aí poderá vir o contraponto também de um outro leitor neófito: “Coitada! Foi tão perseguida, caluniada, enlameada. Será que ela não tinha o direito de ser amada? Será que ela foi realmente má? Não teria Herculano (ou a História) acentuado um caráter forte, que poderia não ser tão mau assim? Será que ela não foi vítima dos acontecimentos em vez de carrasco?” Assim, graças a pensamentos especulativos, passa-se a uma espécie de compreensão primária das mensagens temporais que estão ocultas no texto ficcional, passa-se a modificar o caráter dos personagens. O leitor não seria humano se não agisse assim.
Pelo ponto de vista da livre interpretação, escorada naturalmente nos preceitos da orientação fenomenológica, o leitor atento poderá descobrir que a narrativa apresenta um Dom Fernando fraco, subjugado pela paixão por uma mulher de caráter interesseiro. É aceitável essa fraqueza. É comovente a grandiosidade dessa paixão. Mas, ele não foi tão fraco ao enfrentar a oposição da nobreza e do povo em relação ao seu casamento (se bem que a narrativa faz crer que ele era conduzido pelas mãos firmes de Dona Leonor), pois se fosse fraco acataria a decisão da maioria. Não foi fraco, por exemplo, ao selar a condenação dos traidores. Será que, realmente, ele “sentiu horror” ao assinar a condenação? Ou ele, também, era conivente com as idéias de vingança de Dona Leonor? Quem poderá afirmar com certeza o que se passa no coração humano? E, além disso, não se deve esquecer que a história de Herculano segue os pressupostos do romantismo português do século dezenove, e que o conteúdo ficcional da mesma destaca a época de barbarismos da Idade Média. Matar, naquele período medieval era um ato comum. As vinganças também.
E, Dom Diniz? Este, ao longo da narrativa, é apenas um dos candidatos ao trono paterno, ou seja, nos domínios da ficção é a força motriz para gerar confusões. Dom Diniz é tão ambicioso quanto Dona Leonor, talvez até mais, pois não se acanha em unir-se ao matador de sua mãe, na tentativa de derrubar aquela que se tornara um entrave às suas pretensões. Herculano pinta-o como um jovem orgulhoso e cheio de brios ao enfrentar o irmão, recusando-se a beijar a mão de Leonor Teles, mas, basta que o analista literário busque o auxílio da História e achará assentado o caráter brigão e virulento do infante. Retomando a História de Portugal, o leitor-analista poderá descobrir que Dom Diniz, em virtude de sua desavença com Leonor Teles, exila-se. Posteriormente, retorna a Portugal, após a batalha de Aljubarrota, mas, o novo rei, Dom João I de Avis, que já conhecia o caráter irrequieto do infante, envia-o à Inglaterra. Alguns anos depois, torna-se prisioneiro de piratas flamengos. Depois de um longo cativeiro, vai para a Espanha, onde passa a lutar contra Portugal.
Quanto ao povo (a "arraia miúda" da Idade Média, segundo Alexandre Herculano), este, por si só, vale como personagem. Não há distinções entre o povo. Excetuando-se Fernão Vasques, eleito porta-voz da população, ninguém se destaca em particular. Mas o povo é grandioso ao lutar, e pequeno e insignificante na derrota. É para se lamentar a sorte de um povo que se acomoda à ideologia dominante, que se acomoda ao patriarcalismo milenar. Alcácer por Sua Senhoria!
neumac@oi.com.br
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