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sábado, 31 de julho de 2010

XI - MEMÓRIAS DE CIRCE IRINÉIA: A VINGANÇA DOS OPRIMIDOS ESCRAVOS

XI - MEMÓRIAS DE CIRCE IRINÉIA: A VINGANÇA DOS OPRIMIDOS ESCRAVOS

NEUZA MACHADO

O BisAvô Português de Antoinzinho Papai, com muita certa convicção! um Novo-Cristão!, amava exageradamente a BisAvó Cor de Mel. No entanto, apesar do grande amor pela esposa mestiça, o BisAvô de meu Pai era dono de muitos escravos, e era também um amo muito rude. Os escravos o abominavam, e não entendiam o fato desse amo ser tão mau, uma vez que sua esposa e filhos eram mestiços. E assim, repletos de profundo e duradoiro rancor pelo Senhor que os oprimia, armaram contra ele uma vingança terrível.

Em uma certa manhã, duas escravas, consideradas feiticeiras, foram ao mato colher ervas, depois foram para o galinheiro e recolheram penas de galinha, e, enquanto isso, uma dizia para outra: ― Nosso Sinhô, daqui a pouco, vai para a Cidade de Divino do Carangola com as pernas dele, mas não vai voltar sobre elas. Dito e feito: o Sinhô, meu TrisAvô João Pereira da Cunha, saiu para a Cidade de Divino do Carangola com as pernas dele, vivo, e, ao voltar para casa, caiu do cavalo, já no estertor da morte, na soleira da porta de sua Fazenda. O João Barba de Argolão havia sido envenenado pelas escravas, deixando a Fazenda nas mãos da esposa, Sinhá Antoninha Mulata, e do Filho mais velho, também mulato. Isto aconteceu em meados do século XIX.

Penso, hoje, neste Final de Século XX, que as escravasfeiticeiras”, conforme ficaram conhecidas posteriormente, apenas envenenaram a matolotagem do BisAvô Português de meu Pai Antoinzinho Aquileu. Com certeza, ele parou, no trajeto do retorno para a Fazenda, para almoçar a mistura de carne seca com farinha de mandioca, preparada pelas escravas, e, não percebeu a armadilha. Certamente (estou a imaginar!), ele cavalgou (os últimos quilômetros da volta), coitado!, passando mal. Nem teve tempo de pedir perdão a Deus pelos grandiosos pecados (seculares) que foram cometidos por ele ao longo de sua vida.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

X - MEMÓRIAS DE CIRCE IRINÉIA: A BISAVÓ COR DE MEL

X - MEMÓRIAS DE CIRCE IRINÉIA: A BISAVÓ COR DE MEL

NEUZA MACHADO

A BisAvó Antoninha de meu Pai, uma bela mestiça, enriqueceu os Anais da Família Pereira da Cunha. Sobre essa BisAvó de Antoinzinho Aquileu, há várias histórias que, se não são verdadeiras, pelo menos se encaixam perfeitamente no espaço das probabilidades existenciais.

De acordo com os Anais Orais Familiares (via Antoinzinho Aquileu, naturalmente!), a BisAvó de meu Pai (nascida da relação extraconjugal de um grande Senhor Português, de lídima descendência, com uma escrava, mestiça de negro, índio e português) era a esposa legítima do meu TrisAvô paterno, Português, o BisAvô (de meu Pai) João Pereira da Cunha, em que o sobrenome Pereira denunciava (denuncia) origens judaicas.

Então, repetindo, só para Você não se esquecer: BisaVó Antoninha Pereira era uma mestiça em cujas veias, além dos sangues português e africano, corria também o sangue indígena.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

IX - MEMÓRIAS DE CIRCE IRINÉIA: O SANGUE ÍNDIO POR PARTE DE JANE MAMÃE

IX - MEMÓRIAS DE CIRCE IRINÉIA: O SANGUE ÍNDIO POR PARTE DE JANE MAMÃE

NEUZA MACHADO

Da parte Materna, cresci a ouvir Minha Mãe Jane Briseides Mamãe falar de uma TetrAvó Índia-Puri capturada a laço pelo TetrAvô Português. Segundo Minha Mãe Jane de Ogiges Briseides, existiu na Família dela uma Índia da Tribo dos Puris, índios que viviam na região costeira do Brasil, que se estende do Estado do Rio ao Espírito Santo. Lembro-me de Minha Mãe dizendo que uma sua BisAvó era Puri (a neta da que foi laçada) e eu, já naquela época uma menininha convencida, rindo às bandeiras despregadas, a dizer para minha Mãe que aquilo não era coisa para se espalhar, que era uma grande vergonha ser descendente dos Puris, e que eu tinha lido em uma Enciclopédia que eles eram odiados pelos outros índios mais dignos, e que os Puris, “Mãe!”, a Enciclopédia dizia, eram conhecidos como os “ladrões que vinham do mar”, e que eles roubavam as tribos do interior do Brasil Varonil. “Não, Mãe!, descendente dos Puris, jamais! Eles saíam da costa marítima, Mãe!, para roubar os pobrezinhos indiozinhos que moravam dentro da Floresta do Brasil, Mãe! A senhora está enganada, Mãe!, somos descendentes de uma índia da tribo tupi-guarani. O TetrAvô, Mãe!, roubou foi uma índia tupi-guarani, Mãe! Eu quero ser descendente dos Tupis-Guaranis, Mãe!... Mamãe, plenamente camponesa (terrivelmente brava!), ficava com muita raiva de mim e da minha precoce sapiência, e, não raro, punha-se a me bater seguidamente, varadas e mais varadas!, como se, com isso, conseguisse aplacar a sua rejeição, aversão e humilhação em relação a mim (quanta rima!!!), um fruto de suas entranhas, que só lhe causava dissabores: “Venha cá, sua malcriada!, sua danada!, sua saliente!, indecente!, tome e tome e tome!, p’ra deixar de ser linguaruda! Não fique aí desprezando sua TetrAvó Puri!, não senhora! Pare com esta história de que os Puris eram “ladrões que vinham do mar”! E tome e tome e tome!... E as varadas de guaxima dançavam soltas em minha bunda.

As marcas permanecem vívidas e doloridas, até hoje!, em minhas recordações! Nesses momentos de dolorosos castigos, Papai Antoinzim Aquileu vinha em meu socorro, defendendo aquela que, entre seus frutos masculinos, era a única menininha, a preferida, a amada, a queridinha (“― Não bate na Menina!). Ah!, a braveza de Jane Mamãe! Mesmo com a defesa de Antoinzinho Papai, as varadas de Jane Mamãe não conheciam limites, e eu apanhava, apanhava, apanhava, e o meu infantil sentimento de rejeição crescia, crescia, crescia...

quarta-feira, 28 de julho de 2010

VIII - MEMÓRIAS DE CIRCE IRINÉIA: RECRIANDO UMA GENEALOGIA POSSIVELMENTE VERDADEIRA

VIII - MEMÓRIAS DE CIRCE IRINÉIA: RECRIANDO UMA GENEALOGIA POSSIVELMENTE VERDADEIRA

NEUZA MACHADO

Minha TrisAvó Mestiça, pelo lado Paterno, a Antoninha Pereira, era Descendente de Negros, oriundos da Costa Oeste da África, e de Índios-Puris (pelo lado materno), e de Brancos-Portugueses (pelo lado paterno). Ela era a Mãe do Papai de Minha Avó Paterna (Minha Avó Tuninha: Uma Segunda Antoninha Pereira). O Pai de Minha Avó Tuninha era Senhor de Escravos (e era descendente de escravos, veja Você!)), o Joaquim Pereira da Cunha, Filho do João Pereira da Cunha, Vulgo “Barba de Argolão” (porque o Dito João Pereira usava a barba nesse formato).

Minha Avó, a Mãe de Antoinzinho Papai, chamava-se Antoninha Pereira de Jesus. O “de Jesus” pertencia à Mãe de Minha Avó, uma mulher linda, de olhos azuis, casada com o Fazendeiro Joaquim Pereira da Cunha, o Dito Mulato Senhor de Escravos, o Primogênito de Minha TrisAvó Mestiça. O SobreNome Materno, naquela época, vinha em último lugar e o do Pai, em primeiro lugar.

Do Sangue Índio do Papai de Papai (já me referindo ao outro lado de minha Família paterna), o Zéca de Sousa, um antigo morador do Arraial do Choro Sentido ― hoje, conhecido pelo nome de Santo Antônio do Arrozal ―, não sei de nenhum sobrenome, pero que los hay, hay!

terça-feira, 27 de julho de 2010

VII - MEMÓRIAS DE CIRCE IRINÉIA: MINHAS MISTURAS GENÉTICAS

VII - MEMÓRIAS DE CIRCE IRINÉIA: MINHAS MISTURAS GENÉTICAS

NEUZA MACHADO

Tenho Acá, Certamente!, As Minhas Misturas Genéticas. Qual o Brasileiro que não as tem? Assim, os Diversos SobreNomes delatam que, além do Sangue Português, corre em Minhas Veias o Sangue Negro-Africano, o Índio-Puri, o Espanhol-Castelhano da Puerta Del-Sol, o Francês-Bretano e o Italiano-Romano.

Alguns SobreNomes ligados aos Novos Cristãos da Península Ibérica, de Trezentos Anos Atrás, são lembrados também como somatórios aos Inúmeros Mineiros Ramos Familiares que compõem a Minha Mineira e Importante e Particular Rede Familiar. EnFim, Todos os Meus SobreNomes Afins são respeitosamente idolatrados por mim.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

VI - MEMÓRIAS DE CIRCE IRINÉIA: ILUSTRES SOBRENOMES MINEIROS

VI - MEMÓRIAS DE CIRCE IRINÉIA: ILUSTRES SOBRENOMES MINEIROS

NEUZA MACHADO

Saiba, Você!, Meu Trisavô Português, o João Pereira da Cunha, Vulgo João Barba de Argolão, pelo lado paterno, casado com uma mestiça alforriada, muito linda!, a Trisavó Antoninha (era casado mesmo!), era um conhecido de D. João VI, o Príncipe Regente da Coroa Portuguesa (assim está registrado no Anais Orais da Família). Por esse lado paterno, além do “Pereira da Cunha”, coleciono aleatoriamente Muitos Outros Mineiros SobreNomes Notáveis. TamBém, pelo lado materno, Valerosos SobreNomes da Tradicional Família Mineira se destacaram.

Lembro-me de Mamãe se referindo a uma Rua de Minha Cidade Natal — em Minas Gerais —, assinalada com um de nossos iluuuuuustres sobrenomes, afirmando que ali viveu uma grande parte de sua gloriosa família. Mamãe, muito pomposa!, cheia de si!, costumava dizer: “ — Antes desta Rua dos Romanos existir, aqui era a Grande Fazenda da Velha Romana, Tia-Avó de Meu Pai, Emiliano (Emilianno de Brises, pai de minha Mãe Jane Briseides, oriundo do Brises Homérico) Martins Sant’Anna. A Velha Romana era muito rica, mas os herdeiros não souberam conservar a riqueza da família. Assim, afirmava Mamãe! Si vero...

O Emiliano de Brises era o meu Avô Materno, e era também um Grande DesBravador de Mattas Virgens, além de se ter revelado, para a Posteridade Familiar, um Grande Caçador de Onças Pintadas, Jaguatiricas Noturnas e Gatas do Mato.

(Infelizmente, não posso provar o meu tal parentesco com a Velha Romana, apesar da afirmação de Minha Mãe, a Jane de Ogiges Briseides Mamãe. Antigamente, não existia o dever de registrar nascimentos e bens de família).

domingo, 25 de julho de 2010

V - MEMÓRIAS DE CIRCE IRINÉIA: UMA DESCENDENTE DE MINEIROS SOBRENOMES NOTÁVEIS...

V - MEMÓRIAS DE CIRCE IRINÉIA: UMA DESCENDENTE DE MINEIROS SOBRENOMES NOTÁVEIS...

NEUZA MACHADO

Já informei-Lhe: Sou descendente de mineiros sobrenomes notáveis. Ora, veja Você!, mesmo com tantos sobrenomes ilustres, nasci três tostões!, agasalhada numa peleja rala, que Deus me livre! Apesar da peleja rala inicial, reafirmo-lhe, setecentas e setenta e sete vezes sete, em função da Pura Verdade Exemplar, que os meus troncos familiares são nobres, aristocráticos, da Velha Estirpe das Minas Gerais. Sou proprietária de sobrenomes muuuuuuito famosos, reconhecidos e sacralizados, principalmente, sobrenomes portugueses. Não os assino, é bem verdade!, no entanto, tenho direito a eles.

Infelizmente, Meu Internauta-Leitor!, Meu Ouvinte!, Meu Amor!, agora, aqui Neste Agorá do Final de Século XX e Neste Final de Milênio, é muito tarde para reivindicar o direito de AsSinar SobreNomes Ilustres.

sábado, 24 de julho de 2010

IV - MEMÓRIAS DE CIRCE IRINÉIA: NO INÍCIO DO SÉCULO XX, ERA UMA VEZ...

IV - MEMÓRIAS DE CIRCE IRINÉIA: NO INÍCIO DO SÉCULO XX, ERA UMA VEZ...

NEUZA MACHADO

Era Uma Vez U’a Menininha Magrelinha, Engraçadinha, Alegrezinha, Que Nasceu Em Uma Região De Puro Encantamento...

Vim ao mundo, há muitos annos ― no Início do Século XX ― certa de que iria viver uma vidinha de luxo acá no País da Primavera Eterna, uma vez que imagino ser Descendente da Alta Aristocracia do Brasil Agrário. No entanto, apesar dos Inúmeros Nomes e SobreNomes oriundos da Tradicional Família Mineira (eu os possuo!, pode acreditar!), nasci Três Tostões e, até hoje (centenária que sou!, Final do Século XX; não SI esqueça!), Brigo e Luto Para Tornar-MI Seiscentos Tilhões de Reais.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

III - MEMÓRIAS DE CIRCE IRINÉIA: NO FINAL DO SÉCULO XX, PENSAR É PURO PRIVILÉGIO...

III - MEMÓRIAS DE CIRCE IRINÉIA: NO FINAL DO SÉCULO XX, PENSAR É PURO PRIVILÉGIO...

NEUZA MACHADO

Convenhamos que, Nestes Annos Finais do Século XX e do Segundo Milênio em que todos pensam com a cabeça alheia, é um privilégio pensar com a Própria. (Não se esqueça, Meu Leitor do Futuro, estou a referir-me ao Caótico Final do Século XX). Quanto ao Meu Poder de Pensar ― de acordo com o que já lhe disse anteriormente ― penso, por exemplo, no quanto é difícil raciocinar por conta própria e, ao mesmo tempo, ir vivendo Neste Mundinho Massificado do Final do Século XX. Às Vezes Penso: por que a Ilustração não deu certo? Por que o Ato de Pensar (Neste Final de Século XX) não se encontra no Âmbito da Liberdade, mas sim, da Perseguição? Se intenciono pensar por mim mesma, Neste Final de Século XX, estou vivendo perigosamente. Você me compreende, não é? Mesmo que Camuflada, ainda existe Inquisição em Meu Planeta Terra. Estamos submetidos àquela Velha História de Sempre: “Abaixo os Pensantes! Viva a Ignorância! Et Cœtera, Etc.” Mas, porque não tenho Outra Verdade Para Narrar-Lhe, Neste Final de Século XX de Inúmeras Incertezas Políticas e Sociais, Pensei em Contar-Lhe a Verdade da Minha Vida.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

II - MEMÓRIAS DE CIRCE IRINÉIA: NO FINAL DO SÉCULO XX, A PENSAR...

II - MEMÓRIAS DE CIRCE IRINÉIA: NO FINAL DO SÉCULO XX, A PENSAR...

NEUZA MACHADO

Nasci há muuuuuuito Tempo!, Tempo este que se perde nos desvãos da memória. Já perdi a conta de meus annos de vida. Saiba Você que sou uma Mulher Centenária de muita fibra; sou firme, forte e resistente como as Montanhas de Minha Terra Natal. Sou tão resistente, mas tããão resistente às regras hipócritas criadas pelo homem deste Mundo Rotundo, que vim parar neste Planeta com a plena consciência de que, aqui, tudo teria de ser muito agradável para mim, e, se assim não o fosse, eu faria uma revolução perene para que assim se tornasse. Estou conseguindo meu intento, Meu Rapaz!, através de duras penas, é verdade!, mas estou!

Por que digo isto a Você? Simplesmente porque, por exemplo (e coloque exemplo aí!), detesto alguns políticos mal-intencionados do meu País, e de qualquer Outro País (alguns políticos deste Final de Século XX, bem entendido!), mas, ao mesmo tempo, choro copiosamente quando algum deles, por qualquer motivo, se vai desta para melhor ou pior.

Ah, Meu Amigo!, Neste Final de Século XX (Final de Século XX, lembre-se sempre, por favor!), passei a ter horror ao Poder Secular (privilégios somente para os Abastados) e a amar a Idéia de ReNovação da Condução Política Actual!

Mas retomando a questão do Poder, o Poder do Raciocínio Intelectual se colou em mim desde que me entendi por gente. Percebi que vim a este Mundo para adquirir Poder Imensurável. Um Poder meio às avessas, é bem verdade!, porque não manda em ninguém, mas não deixa de ser Poder. Ora, veja Você!, eu possuo o Poder de Pensar! E, mais notável ainda!, em função de minha longa vivência (sou centenária!), Sei Pensar Com a Minha Própria Cabeça.

Convenhamos que, Nestes Annos Finais do Segundo Milênio, e Nesta Era do Governo do Fernando Sociólogo em que todos pensam com a cabeça alheia, é um privilégio pensar com a Própria. (Não se esqueça, Meu Leitor do Futuro, estou a referir-me ao Caótico Final do Século XX).

quarta-feira, 21 de julho de 2010

I - MEMÓRIAS DE CIRCE IRINÉIA: INÍCIO

I - MEMÓRIAS DE CIRCE IRINÉIA: INÍCIO

NEUZA MACHADO

Está mais do que evidente, Meu Rapaz!, que vou narrar-Lhe a Verdade mais ou menos. A Verdade Verdadeira Antigona, sem um pouco mais de redundância, não tem graça nenhuma. E, depois, há o escopo de que os fatos são coisas do Passado, não há como os recuperar fielmente. Assim, para mim, o Passado é romance, cenas do Ontem que retornam ao intelecto em forma de ficção.

Mesmo romanceando a Verdade, quero deixar registrado, neste depoimento, já um tantão atrasado!, que este Aranzel que virá a seguir não é romance de escritor inspirado, não Senhor!, é a pura Verdade!, ou, se Você quiser!, é a Verdade que se encontra arquivada nos compartimentos reservados às recordações mais caras ou às recordações indesejadas.

Saiba que não sou muito boa de memória, mas, de qualquer maneira, o que é a Verdade? Pense — meu Caríssimo Ouvinte-Internauta Ocasional! — que a recordação é falha!, inclusive, é muito lírica!, e se abriga no fundo do coração, e é, por isto mesmo, i-nes-go-tá-vel, porque submissa a mil e tantos olhares. A memória, Meu Amado!, é curta; a “pobre” possui Verdades sem atrativos ou rejeições; registra os fatos objetivamente, exteriorizadamente, friamente.

Mas o que dizer das recordações: as recordações são sentimentos doídos, sejam alegres ou tristes, que vêm do cantinho mais desconhecido da alma, e, acredite em mim, não é fácil um retroceder íntimo e, dali, retirar sentimentos de ódio ou de amor, de rejeição ou de aceitação. Não é fácil! Mas vou narrar-lhe a Minha Verdade.

terça-feira, 20 de julho de 2010

16.5 - SÉCULO XX: NARRATIVAS DE ACONTECIMENTO - OS CHAPÉUS TRANSEUNTES

16.5 - SÉCULO XX: NARRATIVAS DE ACONTECIMENTO - OS CHAPÉUS TRANSEUNTES

NEUZA MACHADO

Em "Os chapéus transeuntes" (G. Rosa, Estas Estórias), por exemplo, recriando a estória do Vovô Barão, o muito chefe da família dos Andrades Pereiras Serapiães, que se preparava para falecer, o Ficcionista de origem sertaneja mostra o alto estágio de aprofundamento psicológico/mental de seus últimos anos de vida. Idealizando a vida ficcional do Vovô Barão, ele pode escavar o fundo de seu próprio ser sertanejo, pode encontrar nessa escavação o primitivo e o eterno; pode, enfim, dominar sua própria história pessoal, sua própria época, a história de seus ancestrais mineiros e, assim, alcançar a síntese criadora de imagens ficcionais ímpares.

Para finalizar esta minha incursão reflexiva nos domínios ficcionais de Guimarães Rosa, manifesto a importância de se observar essas pequenas frases, reveladoras de imagens grandiosas:

Sobre a família de Vovô Barão:

“(...) nós outros, os Dandrades Pereiras Serapiães, anchos em feliz fortuna e prosápia, como as uvas que num cacho se repimpam (...)” (Guimarães Rosa, op. cit.).

Sobre a narrativa do neto-narrador, comentando a chegada de outros familiares para a iminência de morte do Vovô:

“Vínhamos, pois, não pro nobis, mas por respeitos temporais. Vão ver. Aquilo, aliás, preenchia uma lacuna. (...) A família é uma transação de olhos e retratos, frise-se; nem de leve se dê que, eu, da minha eu zombe. Se é, não será; como não digo. Supro-me em simpatia e responsável solidário com todos os seus jeitos; até mesmo, e de mui modo particular — dado certo vultoso acontecimento do meu coração, de que pronto falarei e já por isso ardo — com tio Nestòrionestor, herói meu de ingrata causa, postiça, cediça. Se possível, então, fixe-se, daqui, o sério, de preferência — no querer crer. Que o mais, normal também, decorre tão-só do espírito-falso da gente, por mais e menos: reside na mentira essencial dos seres personagens. A gente não vê quando vai à lua. Quem sabe a letra da música do galo? Oh espantosa vida. Coisa vulgar é a morte” (Guimarães Rosa, op. cit.).

Sobre a figura do Vovô Barão:

“(...) solitário intacto e irremissivo, ainda que de si dando o que falar: como é destino das torres sobressair, e dos arrotos. Supremo no arrogar-se suma primazia, ferrenho em base e hastes, só aceitava, mesmo a nossa presença — de nós, os parentes, os descendentes, digo — quando com solenidade ou cachaça. Aproximar-se dele era a calamidade sem causa. (...) Seguro, absoluto, de si, esquecido demais do caos original e fechado aos evidentes exemplos do invisível, não sabia o que, no fundo, temia tanto; de modo que, por isso, se estuporava todo em integrado e graúdo. A poesia caíra dele, para sempre, como o coto de seu umbigo dessecado. Era um homem pronominal. Fazia questão de história e espaço” (Guimarães Rosa, op. cit.).

O discurso anormal, insólito, estranho, seja que denominação queiramos dar às características discursivas de Guimarães Rosa, nesta sua última fase criadora, é o discurso de quem já se transportou para os domínios da pura imaginação. A estória do Vovô Barão e de seu incaricaturável criado Bugubu, chamado também o Ratapulgo, é uma estória que produz profundas comoções na alma do leitor. O elemento ar dinamiza as figuras do Vovô e seu criado, sublima-as, trazendo a lembrança de outros seres idênticos, que povoaram a própria existência do leitor. Quantos Vovôs e quantos Ratapulgos cruzaram caminhos vitais e não houve sequer como dar-lhes forma biográfica. Guimarães Rosa, em sua última fase, violenta o leitor criativamente, desnudando suas próprias inquietações existenciais, ao revelar seus personagens nascidos de suas íntimas inquietações.

O escritor do ar não observa as coisas triviais da existência; observa a existência suspensa no tempo do pensamento. Sua imaginação “deforma as imagens ficcionais, para que a “ação imaginante do leitor dê uma formalização ao que foi intuído no decorrer da leitura. O elemento ar, ligado ao imaginário, abre o psiquismo para a experiência da novidade que vem dos “raros clarões do espírito” (Bachelard). Entretanto, nas narrativas de Guimarães Rosa, o elemento ar não produz imagens evasivas, ligadas ao devaneio de quem se deixa levar à deriva. O elemento ar, ao contrário, adquire uma vivacidade diferente, mostra o dinamismo de uma imaginação singular, os matizes imperceptíveis do colorido da vida.

“A verdadeira viagem da imaginação é a viagem ao país do imaginário, no próprio domínio do imaginário. Não entendemos por tal uma dessas utopias que nos dão de uma só vez um paraíso ou um inferno, uma Atlântida ou uma Tebaida. É o trajeto que nos interessaria, e o que nos descrevem é a estrada. Ora, o que queremos examinar (...) é na verdade a imanência do imaginário no real, é o trajeto contínuo do real ao imaginário” (Bachelard).

O Vovô Barão e seu criado são criação literária, não representam biograficamente pessoas que nasceram, viveram e morreram, mas conduzem a realidade da narrativa. A estória do Vovô se submete à lenta e produtiva deformação da imaginação criadora, porque o criador adquiriu muitos talentos em sua vida, viajou pelo mundo, conheceu diversos costumes e tradições. O homem que nasceu em uma região sertaneja contemplou o seu próprio trajeto de vida, ascensional, e pode renovar seus sonhos, reelaborar as velhas tradições que pautaram a sua educação.

“No reino da imaginação, o infinito é a região em que a imaginação se afirma como imaginação pura, em que ela está livre e só, vencida e vitoriosa, orgulhosa e trêmula. Então as imagens irrompem e se perdem, elevam-se e aniquilam-se em sua própria altura. Então se impõe o realismo da irrealidade. Compreendemos as figuras por sua transfiguração. A palavra é uma profecia. A imaginação é, assim, um além psicológico” (Bachelard).

A narrativa "Os chapéus transeuntes" projeta um Vovô inteiro, visto de longe, do alto, de um presente que resgata um passado histórico e distante temporalmente da realidade do momento. É um Vovô transfigurado o que é apresentado pelo neto-narrador. Ele fazia questão de história e espaço, não de copiosidade biográfica, já que ele vivia no tempo das pirâmides, isto é, de tão egocêntrico, ele se colecionava. O ficcionista sertanejo materializa um Vovô imaginário, porque ele conseguiu subir os degraus do tempo do pensamento e ascender ao cogito(3) da consciência pura; conseguiu enfim sublimar a própria realidade ficcional criada por ele, ou seja, passar o sertão das matérias sólidas para uma matéria gasosa. A ascensão ao concreto da forma literária saiu de sua própria realidade íntima e fez parte de um princípio e de uma ordenação renovadas pelo juízo de descoberta; ligou-se às leis de sua infância e experimentou as sensações ímpares que só uma sensibilidade ímpar pode experimentar. O homem do sertão renovou seu rosto primitivo e suas máscaras existenciais no mundo da ficção, ou melhor, no mundo repleto de dinamismo positivo do elemento ar. O narrador do sertão subiu os degraus do tempo do pensamento e cresceu psiquicamente para além das fronteiras vitais e, em sua ascensão ao concreto da forma literária, vivenciou verdadeiramente as imagens e palavras de suas últimas narrativas. Não pode experimentar a transcendência, porque seria impossível abandonar em vida o plano vital da existência ordinária, mas conseguiu descobrir as idéias renovadas que saem dos vagos clarões do espírito. Esse narrador do sertão,

“De repente, morreu: que é quando um homem vem inteiro pronto de suas próprias profundezas. Morreu, com modéstia. Se passou para o lado claro, fora e acima de suave ramerrão e terríveis balbúrdias...” (In: Discurso de Posse do escritor na Academia Brasileira de Letras).

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

segunda-feira, 19 de julho de 2010

16.4 – SÉCULO XX: NARRATIVAS DE ACONTECIMENTO – PENSAMENTOS DE PURA ESTÉTICA

16.4 – SÉCULO XX: NARRATIVAS DE ACONTECIMENTO – PENSAMENTOS DE PURA ESTÉTICA

NEUZA MACHADO

As criaturas do sertão roseano das fases iniciais já estão temporalmente distantes na fase final, porque já não pertencem ao juízo valorizado do escritor; entraram no plano dos juízos de descoberta, singulares, plano este no qual o criador apenas “risca o fósforo de um pensamento para perceber que é só em certas horas de incertos dias que se tem tino para tirar das coisas corriqueiras um juízo novíssimo” (Guimarães Rosa, “A simples e exata estória do burrinho do Comandante”, Estas Estórias).

No plano do transcurso das coisas é impossível descobrir juízos novíssimos. Os juízos de descoberta surgem depois do repouso fervilhante, no âmbito do descontínuo temporal, próximo das inconsequências quânticas.

“Se queremos que o pensamento de pura estética se constitua, será necessário transcender, pelas formas, através do apelo às formas, a dialética temporal. Se mantivéssemos ligação com a vida e com o pensamento corriqueiros, a atividade de estética pura seria puramente ocasional. Ela não teria coerência, não teria "duração". Para durar na terceira potência do cogito, é preciso pois procurar razões para restituir as formas vislumbradas. Não se poderá chegar até lá sem aprender a formalizar atitudes psicológicas bastante diversas” (Bachelard).

Procuro mostrar aqui, de acordo com a orientação bachelardiana, que o Artista Ficcional Guimarães Rosa, nato de uma região sertaneja de Minas Gerais, alcançou na fase final de sua trajetória ficcional pensamentos de transcendência formal. O Artista transcendeu seus limites pelas formas, através do apelo às formas; transcendeu seus limites ficcionais, utilizando-se da dialética temporal.

Mas, é preciso que se realce aqui as contribuições dos elementos vitais, que sem dúvida propiciaram, no âmbito literário, a força revigoradora que estimulou tal transcendência. O fogo transformador, verticalizante (Grande Sertão: Veredas), foi o elemento que proporcionou inicialmente esta elevação espiritual. O elemento ar, elemento tão frágil, segundo Bachelard, recebeu o impulso do fogo e abrigou os pensamentos do Artista em sua última fase. O pensamento da pura estética obteve assim o patrocínio do ar. O pensamento da pura estética necessitou das imagens aéreas dinâmicas para demonstrar os vigorosos movimentos da imaginação criadora. Os incidentes do burrinho do Comandante foram produzidos na viagem aérea do escritor, assim como os incidentes daquele senhor, temporariamente impoluto, da narrativa "Darandina" e os incidentes de todos os personagens dos contos de Primeiras Estórias, Estas Estórias e Tutaméia.

Os pensamentos da pura estética se constituíram, porque o escritor transcendeu-se e transcendeu seus escritos. O escritor vivenciou uma maneira rara de ascensão, ou seja, fez uma incursão aéreo/literária ao plano concreto da forma ficcional. É esta incursão insólita que denominamos aqui como “ascensão ao concreto”. O escritor transcendeu pela forma, através do apelo às formas literárias: a forma como as palavras foram usadas; ele dialetizou aquele espaço neutro que se localiza entre o antes e o depois, entre o tudo e o nada, entre o real e o irreal. Ele recusou uma ligação ativa com as imposições da existência e abandonou os pensamentos corriqueiros que nada revelam. Seus escritos finais são grandiosos e pouco valorizados, porque os intelectuais que avaliam sua obra estão presos aos valores vitais e só sabem enxergar os, sem dúvida alguma, belíssimos conceitos de Grande Sertão: Veredas. Seus escritos finais vão durar na avaliação dos pósteros, porque foram idealizados na terceira potência do cogito. O escritor procurou razões, juízos novíssimos, para restituir à matéria ficcional as formas vislumbradas, naqueles raros clarões do espírito, para adequá-las ao plano concreto da forma literária.

Por esta ótica, como já afirmei antes, poderíamos revisitar todas as outras narrativas da fase final do Artista. Ele conseguiu mostrar a seus leitores eleitos "a diferença que vem-vai do cabível ao possível” (Guimarães Rosa, op. cit.).

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

domingo, 18 de julho de 2010

16.3 – SÉCULO XX: NARRATIVAS DE ACONTECIMENTO


16.3 – SÉCULO XX: NARRATIVAS DE ACONTECIMENTO

NEUZA MACHADO


Refletindo sobre a narrativa “A exata história do burrinho do Comandante” (Guimarães Rosa, Estas Estórias), está claro que o corajoso animalzinho foi idealizado ficcionalmente “nas aragens do largo, num dia vivido demais, quase imaginado” (Guimarães Rosa, op. cit.). O burrinho imaginado nasceu da necessidade de aprofundamento espiritual, vertical, e da ruptura com os valores vitais notadamente lineares. A perspectiva verticalizante, projetada do patamar superior dos pensamentos em direção ao plano inferior vital, engrandece o burrinho (o representante da realidade sertaneja intentando vencer o caos das imposições do cotidiano moderno) e diminui o valor material da embarcação, ao mesmo tempo em que assinala a sua grandeza espiritual: "o destróier pequenino, feito de reduzida matéria, era só alma" (Guimarães Rosa, op. cit.).

Graças à linha perpendicular ao eixo temporal da simples vitalidade, o Artista Ficcional do século XX se evade para o tempo imanente, ou por outra, abandona o tempo do mundo externo, para criar, na forma concreta da Arte Literária (único plano visível da Literatura-Arte), a estória de um burrinho diferente, resgatado dos instantes dinamizados, ou seja, do repouso fervilhante do escritor transmutativo.

“Para fazer o tempo imanente andar, são necessários, assim, ritmos particulares do tempo transitivo. É bem interessante, sob esse aspecto, o caso (da) doente de Straus que "não sentia o tempo avançar a não ser quando estava tricotando” (Bachelard).

Sob a imposição do tempo imanente, mas necessitando dos ritmos particulares do tempo transitivo, para o desenrolar da narrativa, o narrador da fase final entretece a narração dos acontecimentos, misturando conhecimentos históricos, náuticos, experiências filosóficas, mitos e invenções, enfim, desengrenando sonhadoramente os tempos superpostos, mas propenso a avançar temporalmente até o final da narrativa.

Eis aqui alguns trechos esclarecedores:

“Sabe o que é um contratorpedeiro, um destróier? (...) É também a sede das maiores incomodidades. Já para se estar ali dentro; quanto mais para os trabalhos de bordo. De apertadinho espaço, nem tem convés de madeira. Por ser uma caixa de ferro é quentíssimo; e frio, à noite. Frio duro no inverno, se ensopando de umidades: mina água nas chapas, folhas de aço, sem proteção alguma. No verão, calor feroz, suam até os canhões. (...) Não se janta de uniforme branco, como nas demais belonaves; em viagem, usa-se só a roupa mescla em cima do corpo, sem camisa; boné, só a capa e pala. Sopra uma moinha de carvão, por toda a parte, invade o navio, como numa locomotiva, titica palpável e impalpável. Sendo que, em marcha, dá um trotar e sacudir-se, infinito. (...) A popa do destróier principalmente quando a velocidade aumenta, vibra como uma lâmina de faca... Esse animalzinho agilíssimo, destinado para serviços perigosos, olhos e garras das esquadras. Assim, é de se ver que sua função consiste em tirar a segurança da mesma insegurança; seu lema a "prudência da serpente", sua filosofia. (...) O Amazonas foi praticamente o meu navio. Modéstia adiada, eu o manejava como se fosse uma lancha, um escaler. De boa construção inglesa, fora um dos da flotilha de dez, vindos em 1909, em longa travessia do Atlântico, do Clyde às nossas águas. (...) Sua velocidade, com as duas caldeiras: 27 nós; com uma só: 20 milhas horárias; no comum, velocidade de cruzeiro: 13 milhas. (...) Os amarelos sempre bem limpos (...), digo, as curvas de metal, etc. Cor? A de destróier (...) O Amazonas, saiba que com ele a qualidade da minha gente dera de se mostrar. (...) Releve-me bordejar com o assunto, mas entende o que é "formatura de linha"? Veja cada navio do lado seguinte, par a par em par. E "formatura em coluna" é uma nau filando atrás de outra, popa com proa” (Guimarães Rosa, op. cit.).

Um simulacro de combate: é um instante que emociona.

“(...) viramos, noventa graus, justo juntos, ameaçando abalrôo — foi num abrir e fechar de ostra... —, a maruja a dar hurras. Ah, a guinada, é um instante que emociona” (Guimarães Rosa, op. cit.).

No plano exclusivo da ficção, o elemento ar se faz presente, comprovando a sua contribuição para a incursão do Artista nos planos superiores do pensamento.

“Recordo, o mar, no grátis dia de sol, estava de só sua vez, extra azul, do ferrete, como só no alto; e plano, tranqüilinho um lago. Os fios de uma brisa razoável afagavam os ouvidos da gente, o ar quase de montanha. Deadejavam drapes pares de gaivotas, um pássaro rajado de preto e branco voou muito tempo à nossa proa. (...) Em certas horas de incertos dias, todo o mundo é romântico. Eu, também. A beleza e disciplina, o que serve para ensinar a não se temer a morte. Para não temer a vida, não tanto; porque, isto, é aqui a outra coisa” (Guimarães Rosa, op. cit.).

Vê-se também a intromissão do tempo imanente no sempre presente João: o joão-de-barro, o João Mongolô, o Seu Joãozinho Bem-Bem e, agora, o joão-vaga-lume:

No que, no ouvir as canções de carnaval e amor, cantigas, modinhas de antiga praxe, nas sedes desse estilo a gente entendia melhor — que eram para pôr em cofre — os raios da lua cheia no mar, ondas e ondas e reflexos: faiscaria, luminária, artifício de fogos, pirilampos pulando, o noivado deles, de joão-vaga-lume...” (Guimarães Rosa, op. cit.)

Sobre a arte de viver:

“Sabe? Hoje, penso que a arte de viver deve ser apenas tática; toda estratégia, nessa matéria particular, é culposa” (Guimarães Rosa, op. cit.).

O conhecimento dos clássicos; o conhecimento das falíveis leis vitais:
"Ah, a gente navega na vida servido por faróis estrábicos”. O conhecimento da História; o conhecimento filosófico: "Recordei o pensador: “Os homens em geral são mais inclinados a respeitar aquele que se faz temer, do que ao que se faz amar...”; conhecimentos geográficos; conhecimento das próprias aflições existenciais:

“Por quê? Porque tudo o que vem, vem a invisível relógio, como os alísios e as trombas, como as calmarias. (...) Ah, a gente tem de mover-se entre homens — os reais fantasmas, e de partilhar das dúvidas e desordens, que, sem cessar, eles produzem. (...) A dúvida, figuro mal? — vem feito enorme lagosta subindo uma escadinha de ferro de quebra-peito” (Guimarães Rosa, op. cit.).

Conhecimento espiritual, sob a proteção do elemento ar:

“Subi um tempo ao passadiço, para me reconciliar com os espíritos da brisa, abandonar-me aos meus próprios meios” (Guimarães Rosa, op. cit.).

Conhecimento do instante temporal:

“A-tchim! — o que conto. O tempo dá saltos, trai a todos” (Guimarães Rosa, op. cit.).

Conhecimento do juízo de descoberta:

“(...) risquei o fósforo de um pensamento. Só em certas horas é que a gente tem tino para tirar do que é corriqueiro juízo novíssimo” (Guimarães Rosa, op. cit.).

Conhecimento de quem já alcançou o plano máximo da criação e poderosamente pode resumir imagens literárias grandiosas em pequeninas frases ("O sol feria tudo, com reflexos de faca"); ou então, descrevendo a forma como o burrinho foi salvo pelos marinheiros:

“Nem sei se pensei que fosse possível. Mas o burrinho era marítimo: optou rumo, escolhendo o nosso lado, perdera o medo aos vultos, e fez-se, se fez, remanisco, numa só braçada que o esticou até ao Amazonas” (Guimarães Rosa, op. cit.).

O burrinho pedrês da coletânea Sagarana trasladou-se do cogito(1), ou seja, daquele plano em que o Artista se extasiava com a descoberta de um sertão pitoresco e sedutor, para os cogitos superiores da consciência pura; transformou-se num burrinho diferente, inventado, pois que era "apenas a imagem de um burro (...) e transcendia, fresco, ousado, quase uma criança, não obstante o imperfeito da fotografia” (Guimarães Rosa, op. cit.).

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

sábado, 17 de julho de 2010

16.2 – SÉCULO XX: NARRATIVAS DE ACONTECIMENTO


16.2 – SÉCULO XX: NARRATIVAS DE ACONTECIMENTO

NEUZA MACHADO


Consciente da dificuldade em se fixar no plano espiritual, já que isto acarretaria total exclusão do mundo vital, Guimarães Rosa transportou sua inquietude para as difíceis páginas de suas narrativas da última fase. Assim, por exemplo, a narrativa "A simples e exata estória do burrinho do Comandante”, primeira narrativa do corpus de Estas Estórias, é uma retomada inconsciente (ou consciente?) da estória do burrinho pedrês, primeira narrativa do corpus de Sagarana. Entretanto, a história do segundo burrinho desenvolve-se por meio da orientação de uma apreensão literária mais elevada do pensamento. Os espaços em branco (os quais não deverão ser descartados em futuras reimpressões), assinalados por números romanos, revelam os vazios de uma narrativa singular, obrigando o leitor a preenchê-los com a abundância dos próprios pensamentos vitais. Graças a esses vazios, o leitor passa a entender que o “burrinho do Comandante” era um animal diferente dos comuns.

"Um mensageiro, personificação do deus do minuto oportuno, que os gregos prezavam (...) Ainda hoje, quando penso nele, me animo das aragens do largo. Apareceu-me num dia vivido demais, quase imaginado. (...) Eu comandava o Amazonas. Sabe o que é um contratorpedeiro, um destróier? Era — uma lata. Pequenino, bandoleiro e raso, sem peso o casco, feito de reduzida matéria e em mínima espessura — só alma —, seu signo tem de ser todo o da debilidade em si e da velocidade agressiva. O destróier: feito papel” (“A simples e exata estória do burrinho do Comandante”, Estas Estórias).

Submetida aos vagos clarões do tempo espiritual (Bachelard) a descrição do Amazonas não o favorece em absoluto, apenas ressalta com a curta expressão “só alma” a capacidade do Artista Literário do Século XX de se projetar ficcionalmente para fora das expressões corriqueiras. Se a descrição do contratorpedeiro estivesse restrita aos limites vitais (lineares), o narrador roseano certamente teria preenchido páginas e páginas para mostrar ou não a grandiosidade e fortaleza da embarcação.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

sexta-feira, 16 de julho de 2010

16.1 – SÉCULO XX: NARRATIVAS DE ACONTECIMENTO


16.1 – SÉCULO XX: NARRATIVAS DE ACONTECIMENTO

NEUZA MACHADO


Penso nas Narrativas de Acontecimento do Século XX como produtos do escritor reflexivo inserido, indelevelmente, em uma globalizada realidade caótica. Ou ainda: poderiam ser conceituadas (as narrativas do Século XX) como produtos do sonhador-escritor já prestes a recriar o estado de caos de seu repouso ativado, direcionando verticalmente o seu olhar de criador ímpar para esta realidade fragmentada (de cima para baixo, do cogito(3) para o cogito(1)), e, ao mesmo tempo, movimentando destramente a mão que escreve.

As horas de repouso fervilhante, aparentemente inativas, deveverão ser intuídas e posteriormente registradas, se o Artista assim o quiser. Falei páginas atrás dos tempos superpostos, inclusive destaquei os diversos aspectos do tempo — suas diferentes caracterizações —, ajustando-os à criação literária de Guimarães Rosa. Estudando as questões da duração, pela ótica de Bachelard, avaliei reflexivamente, por exemplo, as inquietações existenciais dos pensadores, inquietações vislumbradas a partir do tempo espiritual (cogito(4)) e profundamente dialetizadas na realidade vital. Inferi também que o pensamento transmutativo revela o espaço amorfo do espírito naquele simples momento esvaziado que liga uma questão a outra questão, um argumento a um outro argumento, uma reflexão a uma outra reflexão, e assim sucessivamente. Entende-se, por meio do raciocínio filosófico bachelardiano, que é o espaço sem limites do espírito que se capta no intervalo de duas ações dialéticas combinadas. Pensando estas questões, redescobre-se as palavras do próprio Guimarães Rosa ao crítico alemão Lorenz (cf. ENTREVISTA), quando se autodenominou um “escritor paradoxal”.

Guimarães Rosa, em suas narrativas finais, procurou ascender até ao plano espiritual e, com esta atitude, atingiu o espaço sensível de suas mais íntimas contradições, descobrindo por fim a sua condição de Ser falível ante a grandeza do Nada. Mesmo assim, predispôs-se a criar um mundo ficcional distante dos valores objetivos da vida. Sua inquietude existencial proporcionou-lhe o vislumbre desse espaço fora dos limites vitais e a criação de pequenas narrativas repletas de contribuições metafísicas.

Se o meu pensamento estiver em conformidade com Bachelard, na lição metafísica de Hegel, será possível perceber que Guimarães Rosa se deu o ser ao se recusar o ser na Literatura e, com isto, obteve a certeza de repouso íntimo restabelecido, já que sua alma o obrigou, na fase final, a recusar os valores objetivos, pelo menos em seus textos ficcionais. Detecto assim um Guimarães Rosa inquieto em sua fase final de criação literária. Por esta razão, observa-se um discurso de difícil compreensão nas narrativas de Primeiras Estórias, Estas Estórias, Tutaméia e, volto a reafirmar, em algumas narrativas de Ave, Palavra. Acentuo que não posso interagir reflexivamente com todas as narrativas de Ave, Palavra pelo mesmo prisma, já que a coletânea é um apanhado de textos sem datas, reunidos depois da morte do escritor.

O que se observa, então, nas citadas obras é o tempo espiritual enrodilhado nele mesmo, é a realidade espiritual do escritor se obrigando a ser visível ante o olhar profano de leitores pouco atentos às questões do espírito. O Artista Guimarães Rosa adquiriu a nítida consciência de suas inquietudes existenciais e espirituais e conseguiu sublimá-las, revelando-as, no espaço ainda aceitável das determinações sociais, sob o patrocínio da Arte.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

quinta-feira, 15 de julho de 2010

15 - GUIMARÃES ROSA: RECRIANDO O PASSADO


15 - GUIMARÃES ROSA: RECRIANDO O PASSADO

NEUZA MACHADO


(Burrinho Pedrez – Autor: José Roberto Aguilar - 1974)








O Artista Ficcional sertanejo sonhou com as qualidades íntimas do sertão, mas essas qualidades saíram de seu próprio interior (matéria lírica interagindo com a matéria ficcional). Ao invés de penetrar a crosta da terra sertaneja como um trabalhador braçal, revolveu-a, remexeu-a, ludicamente, para reabastecer-se de lembranças, para induzir-se a um profundo resgate de sua própria essência. O desejo de purificar miticamente o sertão da infância, no início da retomada ficcional de seu rosto primitivo (Goffman, Erving, A representação do eu na vida cotidiana), significou a vontade de limpar a sua casa interior dos miasmas que impregnam a vida moderna.

A obra literária de Guimarães Rosa (suas várias fases) revela um espírito altamente transmutativo: as dialéticas bem e mal, amor e ódio, alegria e tristeza, independentes das várias perspectivas ficcionais que permearam suas etapas criativas, compõem os fragmentos de seu próprio ser sertanejo, dilacerado cotidianamente pelas imposições da sociedade moderna.

O Artista Ficcional Guimarães Rosa, de acordo com a sua visão muito particular do sertão mineiro, lutou contra a extinção de um mundo primitivo. Sobressaíram-se nessa luta suas angústias existenciais, por intermédio dos longos questionamentos de seus ímpares narradores; seus sobressaltos íntimos, mediante as descobertas cotidianas de seus personagens infantis (Primeiras Estórias); o sentimento de culpa do filho do sertão, consciente do desaparecimento do Pai nas águas eternais das recordações (“A terceira margem do rio”, Primeiras Estórias).

É lícito reafirmar que a valorização desse mundo primitivo alcançou um êxito extraordinário, e este êxito só aconteceu porque o escritor valorizou a sua condição de homem sertanejo. O médico, nas narrativas iniciais, o diplomata, nas narrativas finais de Estas Estórias (suas faces de homem citadino), só aparecem para ressaltar os valores imaginários do sertão do passado. A narrativa "A simples e exata estória do burrinho do comandante", do corpus de Estas Estórias, é uma revalorização indireta desse passado. Mesmo que aparentemente o mundo marítimo do Comandante se mostre diferente e distanciado do sertão das primeiras narrativas (Sagarana, Grande Sertão: Veredas), seu discurso evoca uma quase semelhança com o discurso de Riobaldo. Não há ligação aparente entre os dois mundos, mas a lembrança de "um burrinho mignon, a quem o pêlo crespo, as breves patas delgadas e as orelhas de enfeite, faziam pessoa de terreiro e brinquedo, indígena na poesia” (“A simples e exata estória do burrinho do comandante”, Estas Estórias) propicia o sutil contraponto.

No intuito de finalizar esta minha propedêutica, imponho-me a realçar o fato de que as narrativas assinaladas sempre continuarão a impulsionar novas buscas teóricas. Por enquanto, ancorada em minhas reflexões transmutativas-interpretativas, penso que este burrinho do Comandante, um náufrago do mar que enfrenta inúmeros perigos, repete a coragem e a inteligência daquele outro burrinho pedrês, sertanejo, iniciador das etapas evolutivas da incomum criação literária de Guimarães Rosa.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

quarta-feira, 14 de julho de 2010

14.6 - ALÉM DO COGITO TRÊS: UM NOVO DISCURSO FICCIONAL


14.6 - ALÉM DO COGITO TRÊS: UM NOVO DISCURSO FICCIONAL

NEUZA MACHADO


A criação literária de Guimarães Rosa se modifica depois do impacto maravilhado de Grande Sertão: Veredas. As narrativas seguintes, a partir de Primeiras Estórias, revelam as marcas metafísicas dos instantes singulares que decidiram as mudanças de seu novo discurso criador. Submetido a um singularíssimo impacto (o impacto da consciência do infinito), o Artista de Ficção Sertaneja inicia a sua escalada dimensional nos domínios do cogito(3), ansiando ultrapassar os limites de uma criação literária ainda presa aos valores vitais. Os valores do espírito se insinuam em sua última fase criadora. O além do terceiro cogito acena-lhe como uma promessa de transgressão vital. E, no entanto, o Artista tem consciência da impossibilidade de uma total adesão criadora ao que se encontra fora das imposições sócio-vitais.

A narrativa "Meu tio, o Iawaretê" revela dramaticamente esta impossibilidade. Ali se detecta a vontade do Artista de eliminar o narrador (os narradores, experientes e/ou modernos?); detecta-se o desejo do criador literário, já quase nos limites que separam o plano vital do plano espiritual, em destruir sua mais notável criatura ficcional, o narrador das experiências primordiais.

A simbologia de um narrador-índio é fundamental para que o escritor complete o seu ciclo de criação literária. Urge portanto eliminar do espaço da criação ficcional todos os narradores, sejam eles experientes ou modernos; urge instalar nesse espaço o poder do próprio demiurgo, senhor de vida e morte, inclusive da vida e morte de seu narrador. A narrativa "Meu tio, o Iawaretê" realiza esse desejo do Artista do sertão. Ele mata no final seu personagem, o índio Iawaretê, assim como já eliminara em Grande Sertão: Veredas a possibilidade de continuação de relatos romanescos sertanejos submetidos à forte contribuição da matéria épica. De ora em diante, a conscientização dos instantes reveladores de pensamentos grandiosos se fará cada vez mais presente em seus escritos até o final.

De ora em diante, até o final, sua inteligência, já próxima a ultrapassar o cogito(3), não se submeterá mais aos valores vitais. O Artista de Ficção Sertaneja ultrapassou os limites de suas forças criadoras, abrindo um novo caminho em direção ao não-dito. Sua literatura agora apenas revelará fragmentos de vida, já que é impossível mostrar o silêncio sem a contribuição especular da realidade. Seus pensamentos agora não ditam regras de vida, mas a vida também não impõe preceitos e ideologias em seus escritos. Cada palavra, cada frase, cada parágrafo de Estas Estórias, Tutaméia e algumas narrativas de Ave, Palavra parecem flutuar num plano longínquo da realidade sensível.

Essa idéia de flutuação seria aqui, nesta reflexão teórico-interpretativa, uma nomeação muito frágil daquilo que apreende-se como a força do instante dinamizado. As horas de pensamentos inéditos e fecundos, que nasceram depois de seus inúmeros repousos fervilhantes, deixaram um rastro luminoso em suas narrativas finais. E, no entanto, essas narrativas finais, narrativas ímpares, são muito pouco avaliadas pelos críticos literários que se ocupam em analisar a criação ficcional de João Guimarães Rosa. É preciso destacar o poder sobrenatural que se evola dessas últimas narrativas. É preciso que se avalie a extensão da caminhada literária do Artista até o último estágio do pensamento humano, pensamento este ainda aceito como normal no âmbito das diretrizes de vida ditas normais. O Artista Guimarães Rosa iludiu os preceitos sociais de normalidade, transportando para o espaço da criação literária os pensamentos descontínuos do cogito(3), já a um passo de romper com os valores vitais, em direção ao plano espiritual de difícil acesso. Ele iludiu os preceitos sociais de normalidade, porque soube equilibrar, sob o patrocínio da literatura, este plano de autêntica solidão, no qual se viu inserido, com o plano da realidade vital, em que o indivíduo deve se sujeitar às normas sócio-existenciais. Assim, a anormalidade do indivíduo solitário (da Era Moderna), multifacetado, se instala no discurso literário, e o homem Guimarães Rosa será para sempre reverenciado como um dos maiores criadores da literatura brasileira.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

terça-feira, 13 de julho de 2010

14.5 - ALÉM DO COGITO TRÊS: BACHELARD - O “CONHECIMENTO DO INSTANTE CRIADOR”


14.5 - ALÉM DO COGITO TRÊS: BACHELARD - O “CONHECIMENTO DO INSTANTE CRIADOR”

NEUZA MACHADO


“Cette connaissance de l'instant créateur, où la trouverons-nous plus sûrement que dans le jaillissement de notre conscience? N'est-ce pas là que l'élan vital est le plus actif? Pourquoi essayer de revenir à quelque puissance sourde et enfouie qui a manqué plus ou moins son propre élan, qui ne l'a pas achevé, qui ne l'a pas même continué, alors que se déroulent sous nos yeux dans le présent actif, les mille accidents de notre propre culture, les mille tentatives de nous renouveler et de nous créer? Revenons donc au point de départ idéaliste, acceptons de pendre pour champ d'expérience notre propre esprit dans son effort de connaissance. La connaissance est par excellence une œvre temporelle” (BACHELARD, Gaston. Étude sur la Siloë de Gaston Roupnel. "L'intuition de l'instant". France: Editions Gouthier, 1932).

De acordo com Bachelard, o conhecimento do instante criador (conhecimento ligado ao tempo do pensamento) impede o risco de se deixar levar no jorro das emoções desencontradas. Nesse plano estreito e dinamizado não há espaço para o elan vital. Depois desse conhecimento, “por que então retomar uma potência surda e derrotada, destruída em seu próprio elan, que não acaba, que nem mesmo continua, mas que explana sob nossos olhos, no presente ativo, os mil acidentes de nossa própria cultura, as mil tentativas de renovarmo-nos e de renovarmos as nossas crenças?” Depois desse conhecimento, num esforço de conscientização, aceitamos pensar o espírito no plano temporal, já que o conhecimento é por excelência uma obra temporal.

“Essayons alors de détacher notre esprit des liens de la chair des prisons matérielles. Dès qu'on le libère, et dans la proportion où on le libère, on s'aperçoit qu'il reçoit mille incidents, que la ligne de son rêve se brise en mille segments suspendus à mille sommets. L'esprit, dans son œvre de connaissance, se présente comme une file d'instants nettement séparés” (Op. cit.).

Em outras palavras, conforme o texto, o filósofo reconhece que é inerente ao ser humano separar a matéria do espírito, mas, quando há a liberação do espírito, e “na dimensão exata onde se o liberou”, será possível perceber que este plano intermediário revela mil acidentes, e que a linha divisória se quebra em mil segmentos todos importantes. O espírito (matéria amorfa), no tempo do pensamento, “se présente comme une file d'instants nettement separes”. O psicólogo, por exemplo, observando os vazios existenciais, escreve uma história, como qualquer historiador, tecendo aí as ligações da duração. Em cada íntimo, no qual a gratuidade (o Vazio) possui um sentido claro, não se agarra mais a causalidade, doadora de uma poderosíssima força à duração, e isto torna-se indiretamente um problema, ou seja, procurar buscar as causas dos vazios em um espírito onde nascem apenas idéias.

Bachelard revela ainda a sua total adesão aos pensamentos roupnelianos, ao rejeitar explicitamente os pensamentos de Bergson, e esta rejeição se deve ao fato de que falta a Bergson, ao lado de suas idéias sobre a duração, "concéder une réalitè décisive à l'instant”(Op. cit.).

Na verdade, não foi exatamente uma rejeição, já que ele convivera com as idéias bergsonianas por algum tempo, antes de seu envolvimento com as revolucionárias idéias de Gaston Roupnel sobre o instante dinamizado. O que o levou a reconsiderar a questão e a tomar o partido de Roupnel foi uma severa reflexão a que se impôs, buscando inclusive nas idéias de Einstein, sobre a relatividade do tempo, o apoio necessário para recolocar a questão.

A crítica einsteiniana da duração objetiva despertou-o de seus sonhos dogmáticos, abalando sua confiança na tese bergsoniana e induzindo-o a uma nova tomada de posição. Ele conscientizou-se que a crítica einsteiniana destrói o absoluto que dura (essência do pensamento bergsoniano sobre a duração), mas resguarda o absoluto que é, ou seja, o absoluto do instante. Para ele, o que Einstein nomeia como realidade é apenas o lapso do tempo, o longo do tempo. Em outras palavras, no método einsteiniano de medir o tempo, este longo se revela relativo.

Para Bachelard, no que concerne a Bergson, este apenas sublinha o todo da sucessão temporal em inúteis jogos de cálculo, valendo-se de uma teoria da duração submetida à causa imediata da consciência.

Inspirado nas intuições roupnelianas, ele descobre como, aos poucos, se constrói a duração com os instantes inativos (instantes sem duração), o que prova o caráter metafísico primordial do instante, ao mesmo tempo que prova, também, o caráter indireto e mediador da duração.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

segunda-feira, 12 de julho de 2010

14.4 - ALÉM DO COGITO TRÊS: A CONSCIÊNCIA DA “SOLIDÃO METAFÍSICA”


14.4 - ALÉM DO COGITO TRÊS: A CONSCIÊNCIA DA “SOLIDÃO METAFÍSICA”

NEUZA MACHADO


No que tange a sua obra, o Ficcionista Guimarães Rosa, originário do sertão de Minas Gerais, em princípio, procurou organizar seus “momentos fervilhantes”, procurando dar consistência real a sua imensa intuição literária sobre o sertão da infância e adolescência. A consciência de sua “solidão metafísica” (solidão do Homem Moderno), em meio a uma elite intelectual, para ele, insatisfatória, um grupo que, segundo suas próprias palavras (Entrevista ao crítico alemão Günter Lorenz), só sabe transmitir bolas de papel (op. cit.: 16), impulsiona-o à retomada literária dos valores primordiais de seu princípio de vida.

É nesse momento que o Artista retoma intuitivamente e simbolicamente o mito de Siloé, ou seja, retrocede literariamente ao seu passado (imaculado pelo poder das recordações) para beber na fonte pura de suas origens. Em sua clausura temporal (ficcional), procura reformar o fantasma do passado para iludir o porvir.

O tempo do pensamento o enclausurou no ápice de sua evolução mental (cogito(3)) e o induziu a reformar o sertão do passado, para livrá-lo do temor do futuro.

Eis as palavras de Riobaldo, seu personagem em Grande Sertão: Veredas:

“Mas, o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de territórios, para sortimento de conferir o que existe? Tem seus motivos. Agora — digo por mim — o senhor vem, veio tarde. Tempos foram, os costumes demudaram. Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada. Os bandos bons de valentões repartiram seu fim; muito que foi jagunço, por aí pena, pede esmola. Mesmo que os vaqueiros duvidam de vir no comércio vestidos de roupa inteira de couro, acham que traje de gibão é feio e capiau. E até o gado no grameal vai minguando menos bravo, mais educado: casteado de zebu, desvém com o resto de curraleiro e de crioulo. Sempre, nos gerais, é à pobreza, à tristeza. Uma tristeza que até alegra. Mas, então, para uma safra razoável de bizarrices, reconselho de o senhor entestar viagem mais dilatada. Não fosse meu despoder, por azias e reumatismos, aí eu ia. Eu guiava o senhor até tudo” (Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas).

O personagem revela o estado de espírito do Artista mineiro, naquela fase, e o seu desejo de recuperar um passado epicamente sem nódoa. O seu momento histórico/social, por ocasião da criação de Grande Sertão: Veredas, não era um momento reconfortante, já que a humanidade tentava se recuperar de uma recente guerra mundial. O Artista, enquanto cidadão do mundo, participara ativamente do conflito, em sua função de diplomata na fervilhante Europa. Portanto, o seu desejo de recuperar literariamente o sertão imaculado da infância era um desejo mais que justificado. Mais justificada ainda é a sua adesão intuitiva ao elemento fogo, como marca de mudança narrativa, já que o fogo está intimamente ligado à idéia de guerra. O Artista percebe que as guerras sempre existiram e que o sertão, miticamente reconstruído, não deixava de ser ele também um reduto de pura violência. Riobaldo e os jagunços simbolizam o instinto guerreiro da humanidade; o amor, que o envolveu e o fez idolatrar o guerreiro Diadorim, simboliza o desejo de paz, desejo este inerente ao homem que pensa e direciona seus próprios instintos.

O mito de Siloé se faz presente implicitamente em Grande Sertão: Veredas, porque o escritor do sertão, no momento de sua criação ficcional, certamente, se encontrava psiquicamente traumatizado pelas sequelas do pós-guerra, já que vivenciara como diplomata os problemas da Segunda Guerra Mundial. Sua infância mineira, repleta de mitos e superstições, também fora povoada por estórias de guerreiros-jagunços. Tais seres extraordinários aterrorizaram o mundo infantil nas longas noites sertanejas ou mesmo nas cidadezinhas interioranas iluminadas pelo fogo acolhedor do fogão a lenha; seres relembrados pelos mais velhos e experientes, ansiosos para demonstrarem aos jovens o espírito heróico daqueles que no passado sustentaram o futuro.

“Não me interessa o dinheiro: venho de um mundo onde ele não adianta muito; lá se necessita de pão, armas, cavalos, e ainda se pratica o comércio da troca” (Guimarães Rosa – Entrevista).

O Artista, certamente desiludido com a realidade moderna que o cercava, procurou um novo ritmo de vida que o fizesse reencontrar as suas origens e o restituísse à felicidade de outrora. O elemento fogo iluminou as lembranças e as recordações das fontes e rios do sertão do passado, fazendo-o conscientizar-se de sua antiga tranquilidade. O elemento fogo restituiu-lhe os instantes claros do passado épico de seus ancestrais, mas obrigou-o posteriormente a elaborar um novo ritmo de vida. Ele viu-se intimado, pela sua própria consciência singular, a romper com o aspecto heróico de seu passado. Depois de quinhentas e sessenta e três páginas escritas sob o comando da perspectiva maravilhada, páginas de retorno e retomada de valores puros, foi necessário romper (matar) literariamente com o passado, para que ele renascesse diferente nas páginas das narrativas seguintes. O longo narrar do épico e ao mesmo tempo lírico jagunço Riobaldo e a morte do singular guerreiro Diadorim representam esse instante de lúcida conscientização.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8