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domingo, 18 de julho de 2010

16.3 – SÉCULO XX: NARRATIVAS DE ACONTECIMENTO


16.3 – SÉCULO XX: NARRATIVAS DE ACONTECIMENTO

NEUZA MACHADO


Refletindo sobre a narrativa “A exata história do burrinho do Comandante” (Guimarães Rosa, Estas Estórias), está claro que o corajoso animalzinho foi idealizado ficcionalmente “nas aragens do largo, num dia vivido demais, quase imaginado” (Guimarães Rosa, op. cit.). O burrinho imaginado nasceu da necessidade de aprofundamento espiritual, vertical, e da ruptura com os valores vitais notadamente lineares. A perspectiva verticalizante, projetada do patamar superior dos pensamentos em direção ao plano inferior vital, engrandece o burrinho (o representante da realidade sertaneja intentando vencer o caos das imposições do cotidiano moderno) e diminui o valor material da embarcação, ao mesmo tempo em que assinala a sua grandeza espiritual: "o destróier pequenino, feito de reduzida matéria, era só alma" (Guimarães Rosa, op. cit.).

Graças à linha perpendicular ao eixo temporal da simples vitalidade, o Artista Ficcional do século XX se evade para o tempo imanente, ou por outra, abandona o tempo do mundo externo, para criar, na forma concreta da Arte Literária (único plano visível da Literatura-Arte), a estória de um burrinho diferente, resgatado dos instantes dinamizados, ou seja, do repouso fervilhante do escritor transmutativo.

“Para fazer o tempo imanente andar, são necessários, assim, ritmos particulares do tempo transitivo. É bem interessante, sob esse aspecto, o caso (da) doente de Straus que "não sentia o tempo avançar a não ser quando estava tricotando” (Bachelard).

Sob a imposição do tempo imanente, mas necessitando dos ritmos particulares do tempo transitivo, para o desenrolar da narrativa, o narrador da fase final entretece a narração dos acontecimentos, misturando conhecimentos históricos, náuticos, experiências filosóficas, mitos e invenções, enfim, desengrenando sonhadoramente os tempos superpostos, mas propenso a avançar temporalmente até o final da narrativa.

Eis aqui alguns trechos esclarecedores:

“Sabe o que é um contratorpedeiro, um destróier? (...) É também a sede das maiores incomodidades. Já para se estar ali dentro; quanto mais para os trabalhos de bordo. De apertadinho espaço, nem tem convés de madeira. Por ser uma caixa de ferro é quentíssimo; e frio, à noite. Frio duro no inverno, se ensopando de umidades: mina água nas chapas, folhas de aço, sem proteção alguma. No verão, calor feroz, suam até os canhões. (...) Não se janta de uniforme branco, como nas demais belonaves; em viagem, usa-se só a roupa mescla em cima do corpo, sem camisa; boné, só a capa e pala. Sopra uma moinha de carvão, por toda a parte, invade o navio, como numa locomotiva, titica palpável e impalpável. Sendo que, em marcha, dá um trotar e sacudir-se, infinito. (...) A popa do destróier principalmente quando a velocidade aumenta, vibra como uma lâmina de faca... Esse animalzinho agilíssimo, destinado para serviços perigosos, olhos e garras das esquadras. Assim, é de se ver que sua função consiste em tirar a segurança da mesma insegurança; seu lema a "prudência da serpente", sua filosofia. (...) O Amazonas foi praticamente o meu navio. Modéstia adiada, eu o manejava como se fosse uma lancha, um escaler. De boa construção inglesa, fora um dos da flotilha de dez, vindos em 1909, em longa travessia do Atlântico, do Clyde às nossas águas. (...) Sua velocidade, com as duas caldeiras: 27 nós; com uma só: 20 milhas horárias; no comum, velocidade de cruzeiro: 13 milhas. (...) Os amarelos sempre bem limpos (...), digo, as curvas de metal, etc. Cor? A de destróier (...) O Amazonas, saiba que com ele a qualidade da minha gente dera de se mostrar. (...) Releve-me bordejar com o assunto, mas entende o que é "formatura de linha"? Veja cada navio do lado seguinte, par a par em par. E "formatura em coluna" é uma nau filando atrás de outra, popa com proa” (Guimarães Rosa, op. cit.).

Um simulacro de combate: é um instante que emociona.

“(...) viramos, noventa graus, justo juntos, ameaçando abalrôo — foi num abrir e fechar de ostra... —, a maruja a dar hurras. Ah, a guinada, é um instante que emociona” (Guimarães Rosa, op. cit.).

No plano exclusivo da ficção, o elemento ar se faz presente, comprovando a sua contribuição para a incursão do Artista nos planos superiores do pensamento.

“Recordo, o mar, no grátis dia de sol, estava de só sua vez, extra azul, do ferrete, como só no alto; e plano, tranqüilinho um lago. Os fios de uma brisa razoável afagavam os ouvidos da gente, o ar quase de montanha. Deadejavam drapes pares de gaivotas, um pássaro rajado de preto e branco voou muito tempo à nossa proa. (...) Em certas horas de incertos dias, todo o mundo é romântico. Eu, também. A beleza e disciplina, o que serve para ensinar a não se temer a morte. Para não temer a vida, não tanto; porque, isto, é aqui a outra coisa” (Guimarães Rosa, op. cit.).

Vê-se também a intromissão do tempo imanente no sempre presente João: o joão-de-barro, o João Mongolô, o Seu Joãozinho Bem-Bem e, agora, o joão-vaga-lume:

No que, no ouvir as canções de carnaval e amor, cantigas, modinhas de antiga praxe, nas sedes desse estilo a gente entendia melhor — que eram para pôr em cofre — os raios da lua cheia no mar, ondas e ondas e reflexos: faiscaria, luminária, artifício de fogos, pirilampos pulando, o noivado deles, de joão-vaga-lume...” (Guimarães Rosa, op. cit.)

Sobre a arte de viver:

“Sabe? Hoje, penso que a arte de viver deve ser apenas tática; toda estratégia, nessa matéria particular, é culposa” (Guimarães Rosa, op. cit.).

O conhecimento dos clássicos; o conhecimento das falíveis leis vitais:
"Ah, a gente navega na vida servido por faróis estrábicos”. O conhecimento da História; o conhecimento filosófico: "Recordei o pensador: “Os homens em geral são mais inclinados a respeitar aquele que se faz temer, do que ao que se faz amar...”; conhecimentos geográficos; conhecimento das próprias aflições existenciais:

“Por quê? Porque tudo o que vem, vem a invisível relógio, como os alísios e as trombas, como as calmarias. (...) Ah, a gente tem de mover-se entre homens — os reais fantasmas, e de partilhar das dúvidas e desordens, que, sem cessar, eles produzem. (...) A dúvida, figuro mal? — vem feito enorme lagosta subindo uma escadinha de ferro de quebra-peito” (Guimarães Rosa, op. cit.).

Conhecimento espiritual, sob a proteção do elemento ar:

“Subi um tempo ao passadiço, para me reconciliar com os espíritos da brisa, abandonar-me aos meus próprios meios” (Guimarães Rosa, op. cit.).

Conhecimento do instante temporal:

“A-tchim! — o que conto. O tempo dá saltos, trai a todos” (Guimarães Rosa, op. cit.).

Conhecimento do juízo de descoberta:

“(...) risquei o fósforo de um pensamento. Só em certas horas é que a gente tem tino para tirar do que é corriqueiro juízo novíssimo” (Guimarães Rosa, op. cit.).

Conhecimento de quem já alcançou o plano máximo da criação e poderosamente pode resumir imagens literárias grandiosas em pequeninas frases ("O sol feria tudo, com reflexos de faca"); ou então, descrevendo a forma como o burrinho foi salvo pelos marinheiros:

“Nem sei se pensei que fosse possível. Mas o burrinho era marítimo: optou rumo, escolhendo o nosso lado, perdera o medo aos vultos, e fez-se, se fez, remanisco, numa só braçada que o esticou até ao Amazonas” (Guimarães Rosa, op. cit.).

O burrinho pedrês da coletânea Sagarana trasladou-se do cogito(1), ou seja, daquele plano em que o Artista se extasiava com a descoberta de um sertão pitoresco e sedutor, para os cogitos superiores da consciência pura; transformou-se num burrinho diferente, inventado, pois que era "apenas a imagem de um burro (...) e transcendia, fresco, ousado, quase uma criança, não obstante o imperfeito da fotografia” (Guimarães Rosa, op. cit.).

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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