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sexta-feira, 7 de maio de 2010

4.4 – GUIMARÃES ROSA: O PRAZER DE NARRAR


4.4 – GUIMARÃES ROSA: O PRAZER DE NARRAR

NEUZA MACHADO



Examinando os temas ciência e espírito, racionalismo e primitivismo, Gaston Bachelard refaz a história da descoberta do fogo, criticando as lacunas do pensamento objetivo sobre o assunto, provando que as explicações científicas nem sempre convencem ao analista argumentador. O filósofo procura demonstrar que a observação ingênua por vezes é mais reveladora.

Recuperando as idéias racionalistas sobre a descoberta do fogo, que explicam tal invento tomando-se por base a fricção de dois pedaços de madeira, Bachelard afirma que o esclarecimento racional não satisfaz plenamente aos estudiosos do assunto.

“Se uma explicação racional e objetiva é, na verdade, pouco satisfatória para justificar uma descoberta realizada por um espírito primitivo, uma explicação psicanalítica, por muito fantástica que pareça, deve finalmente ser a explicação psicológica verdadeira.

Em primeiro lugar, temos de reconhecer que a fricção é uma experiência muito sexualizada. Não teremos dificuldade em nos convencermos disso ao consultarmos os documentos psicológicos reunidos pela psicanálise clássica. Em segundo lugar, se quisermos sistematizar as indicações de uma psicanálise especial das impressões calorígenas, ficaremos convencidos de que a tentativa objetiva de produzir o fogo através da fricção é sugerida por experiências absolutamente íntimas. Seja como for, é neste campo que o circuito se revela mais curto entre o fenômeno do fogo e a sua reprodução. O amor é a primeira hipótese científica para a reprodução do fogo” (Bachelard).

Por via bachelardiana, repenso algumas sequências da narrativa ficcional A Hora e Vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa: Por amor às recordações do sertão, o Artista renovou seu ato de narrar sob a cumplicidade do fogo. Descobriu também que só a chama vertical transcenderia os limites do palpável, transportando-se para o plano infinito dos sonhos maiores.

O amor marca esta passagem de fogo na obra roseana. O amor primitivo em A Hora e Vez de Augusto Matraga e o amor sublime de Riobaldo por Diadorim, em Grande Sertão: Veredas.

O amor primitivo, inserido na narrativa A Hora e Vez de Augusto Matraga, sobressai-se por intermédio de duas meretrizes sertanejas, muito disputadas pelos capiaus durante o leilão em honra de Nossa Senhora das Dores do Córrego do Murici; leilão este que, iluminado pelo fogo mítico, se manifesta como elemento desencadeador das posteriores transformações narrativas.

Se a fricção de dois pedaços de madeira como origem científica do fogo não satisfaz aos estudiosos, a fricção de corpos que se buscam como origem metafísica do fogo alcança maior aceitação por parte dos sonhadores ígneos. O sonhador das chamas, sob o poder da subjetividade, consegue explicar e convencer o leitor.

O temporário sonhador/narrador de chamas capta a contribuição da fricção sexual primitiva e explora-a criativamente, demonstrando que a inflamação dos instintos pode mudar os rumos de anteriores propostas narrativas. Assim, logo no início apresenta o herói (mítico-pagão) Nhô Augusto, em um leilão de santo (místico-cristão), no meio de "uma multidão encachaçada de fim de festa", disputando com o "povo encapetado" as duas "mulheres-à-toa" que ali se achavam. O Todo Poderoso senhor-de-terra arremata a meretriz branca por cinquenta mil-réis, enquanto que a outra, a Angélica preta, "se rindo, sem vergonha e dengosa, se soverteu na montoeira, de braço em braço, de rolo em rolo, pegada, manuseada, beliscada e cacarejante” (op. cit). O narrador inflama a narrativa com primitivos devaneios sexuais.

O narrador neste momento de confusão está consciente e em estado de gozo. O povo do sertão vibra, porque o Artista moderno também vibra com a descoberta de seu amor pela terra nativa. O dinamismo vital fá-lo descobrir-se como autêntico representante de uma região mal conceituada socialmente. O dinamismo vital impele-o para uma transformação (ao nível da ficção) que dignifique o sertão no âmbito universal. Por isto o gozo da descoberta: o amor ao sertão da infância é superior aos apelos da modernidade.

“Para inflamar o pilão, enfiando-o na ranhura da madeira seca, é preciso tempo e paciência. Porém tal trabalho devia agradar a um ser cujos devaneios eram sexuais. Foi talvez a fazer esse trabalho que o homem aprendeu a cantar” (Bachelard).

Para inflamar a narrativa, ele recorre ao aparato mítico: com a chegada de Nhô Augusto, para arrematar a meretriz Sariema no leilão, houve um deslocamento de gentes, porque a figura imponente do herói, alteado, peito largo, vestido de luto (a cor negra de suas vestes como símbolo de poder) se agigantava, diminuindo ainda mais o povo, já por si pequeno na escala social. Assim, visualiza-se um Zeus sertanejo pisando pé dos outros, não se incomodando em destruir, varando à frente da massa, se encarando com a Sariema, pondo-lhe o dedo no queixo; a Sariema como uma das deidades preferidas pelo tonitruante deus com voz de meio-dia, voz de quem se encontra no auge de seu poder; o tonitruante que nunca pede, ao contrário, berra, grita, impõe. Um deus sertanejo acostumado a determinar o destino de seus subordinados, que não oferece o rosto ao povo, mas espera os aplausos, a glorificação.

O deus sertanejo já não se encontra em um espaço apenas mítico. O mítico se amalgama ao místico. Há um leilão de santo, e muita luz de azeite (fogo mítico), e isto indica que alguma coisa está por acontecer. Há o povo miticamente encapetado e sedento por prazeres como nas festas pagãs; há o Tião leiloeiro, mensageiro do deus monoteísta, lembrando à multidão o aspecto sagrado do evento. Todas as ocorrências iniciais impõe reafirmar que a narrativa remete simbolicamente a um momento de transição narrativa.

Nesse momento de transição, os devaneios do narrador roseano são obrigatoriamente sexuais. Por isto, a presença das duas meretrizes logo no início.

“E, na primeira fila, apertadas contra o balcãozinho, bem iluminadas pelas candeias de meia-laranja, as duas mulheres-à-toa estavam achando em tudo um espírito enorme, porque eram só duas e pois muito disputadas, todo-o-mundo com elas querendo ficar” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).

Por isto, os desejos de amor do capiauzinho enamorado pela meretriz Sariema;

“Mas perto, encostado nela outra, um capiau de cara romântica subia todo no sem-jeito; eles estavam se gostando, e, por isso, aquele povo encapetado não tinha — pelo menos para o pobre namorado — nenhuma razão de existir” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).


Por consequência, o desejo sensual de Nhô Augusto, rematando-a por cinquenta mil-réis e tomando-a do capiauzinho. Assim, a narrativa, neste início, reproduzindo a realidade sertaneja, é ritmada e agradável.

Neste aspecto, Bachelard cita a tese de Pinheiro dos Santos sobre ritmanálise. A ritmanálise produz harmonia, impele o trabalhador a ritmar seu trabalho, obriga-o a atribuir "realidade temporal àquilo que vibra”, e o discurso modificado vibra sob os impulsos do prazer narrativo.

A fricção acima assinalada continua ao longo do ato de narrar roseano. O narrador ainda primitivo, diegético, vai aos poucos descobrindo "a consciência de si próprio", que é, acima de tudo, segundo Bachelard, confiança em si próprio. É o Artista ficcional se descobrindo.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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