A HISTÓRIA DE ANTÔNIO: O
BISAVÔ JOÃO PEREIRA
AUTOR: ANTÔNIO DE SOUSA COSTA
18/02/1910 (Santo Antônio do
Arrozal, MG) - 29/07/1990 (Carangola, MG)
Na década de
1840 chegava à extensão de terra sem dono, que depois se tornaria a Fazenda Cachoeira,
Município de Carangola, Estado de Minas Gerais, João Pereira, vulgo Barba de
Argolão. Ele vinha de Ponte Nova, Minas Gerais, escoltando sessenta escravos
que pertenciam a ele. Com uma autorização imperial bem guardada em sua mala,
naquele local fixou residência, pouco abaixo da Cachoeira. Com o documento de posse nas mãos, construiu
um casarão que abrigou toda a sua família e agregados. Fez também uma grande
sanzala que era a residência dos escravos. João Pereira, vulgo Barba de
Argolão, era português, casado com uma mestiça, filha de índio com negro, por
nome Antônia, mas era chamada de Antoninha. Desse matrimônio nasceram
sete filhos, sendo quatro homens e três mulheres. Nomes dos homens: Joaquim,
Sebastião, João e Manuel. Nomes das mulheres: Joana, Antônia e Luiza.
Carangola, até hoje em dia, é conhecida como uma cidade da Zona da Mata
Mineira. Naquele tempo era mata virgem cerrada, com poucos moradores. A terra
era posseada. O Governo da Regência Imperial oferecia as posses para os súditos
portugueses. Cada morador português remarcava o seu pedaço de terra o quanto
queria. João Argolão, como era chamado, tendo ele muitos escravos, demarcou uns
quinhentos alqueires de terra. As divisas eram águas vertentes. Com os seus
escravos, ele fez uma picada nos altos. De distância em distância, ele cortava
uma árvore das mais grandes e dizia para os escravos: “– Esta é a divisa que
tem que ser respeitada”. E, assim, formou uma grande Fazenda que, até hoje, tem
o nome de Fazenda Cachoeira.
Mas teve poucos anos de vida,
pois, sendo ele bastante severo com os escravos, duas escravas feiticeiras
fizeram feitiço para que ele morresse. E morreu mesmo. Esta história da morte
de João Argolão foi assim. Ele saiu da Fazenda para ir ao Divino de Carangola,
para fazer umas compras, e as duas escravas ficaram tramando o feitiço, e dizia
uma para a outra: “– Nhô-nhô saiu de casa com as pernas dele, mas não entra em
casa com as pernas dele”. E tudo isto aconteceu. Elas foram pra debaixo do poleiro das galinhas,
apanhavam penas das galinhas, e sempre dizendo: “– Ele não entra com suas
pernas”. E tudo isto aconteceu. Quando ele chegou em casa, que foi apear do
cavalo, caiu ao chão, e foi carregado até a sua cama, e dali foi para o
cemitério. Joaquim, sendo o mais velho dos irmãos, ficou administrando a
Fazenda. Joaquim era casado com Maria Brasilina de Jesus. Joaquim também era
severo com os escravos (apesar de seu parentesco com seus próprios escravos, já
que sua mãe Antônia era mestiça), batia nos escravos amarrados num topo, e sem
piedade. Um dia, as duas escravas quiseram fazer uma vingança, mas não com ele.
Dessa vez, elas quiseram matar a esposa dele, Maria Brasilina, que ficou doente
e foi pra cama. Estava mesmo a ponto
de morrer, mas, Joaquim, desconfiou das duas escravas, e disse pra elas: “– Se Sá Maria morrer, eu vou acender uma fogueira e vou jogar vocês duas
vivas dentro do fogo”. Sabendo que ele falava e cumpria o juramento, elas
desmancharam o feitiço, e, em poucos dias, Maria Brasilina estava salva daquele
mal.
Joaquim dirigiu a Fazenda até
o ano de 1888 daquela Era, pois veio a liberdade dos escravos, decreto-lei pela
Princesa Isabel, no dia 13 de maio de 1888. Com a liberdade dos escravos,
Joaquim ficou perturbado do cérebro. Como era estudado, reuniu os escravos no
terreiro da Fazenda e começou falando discurso, e dizia para os escravos: “ –
Hoje vocês têm liberdade, são senhores de si, fazem o que querem, mas, eu não
dou nem um ano e vocês estarão matando uns aos outros”. E conforme ele previu,
isto aconteceu. Os escravos iam para as vendas de cachaças, bebiam até se
embriagarem e, na volta para casa, brigavam e esfaqueavam uns aos outros.
Joaquim estava com cinquenta
anos quando veio a liberdade dos escravos. Sabendo que não tinha mais negro
para trabalhar, ficou tão perturbado, que saiu de casa fazendo desordem,
bebendo bebida alcoólica, brigando, batendo e apanhando. Ficou mesmo louco.
Chegou até Ponte Nova. De lá, veio a notícia para os irmãos e os filhos, que
foram buscá-lo. Sebastião, filho, e Marcolino, genro, saíram em busca de
Joaquim, e levaram Antônio Barbosa, que era casado com uma sobrinha de Joaquim,
e foram os três até Ponte Nova. Pegaram ele e amarraram os braços atrás, e
voltaram com ele para casa. Mas, em certa distância, ele embirrou, fazendo
manha, não querendo andar. Eles tiveram então a idéia de surrá-lo. Sebastião e
Marcolino saíram de perto, pra não
verem ele apanhar, e Antônio Barbosa deu nele uma coça de vara de guaxima, e,
assim, conseguiram fazer ele andar, e chegaram em casa. Prenderam-no dentro de
um quarto, amarraram uma corrente na cintura dele, e ali ele ficou seis meses
preso. No decorrer desse tempo, ele parou de falar, ficou calmo, e assim
Sebastião e Marcolino soltaram ele. Isto era no Inverno. Quando chegava o
Verão, ele começava a andar, falando sozinho, sem ninguém estar ao seu lado. E
quando ele chegava aonde tinha pedra, percebendo que estavam procurando por
ele, para prendê-lo, jogava pedra em todos que se aproximavam; ninguém chegava
perto, pois ele jogava pedra. Joaquim era alto, forte e muito musculoso. Para
prendê-lo, tinha que ser por traição. Reuniram-se os filhos e os vizinhos para
prendê-lo. Uns fizeram frente a ele, outros foram pela retaguarda e jogaram um
laço nele e puxaram. Joaquim pegou e deu um puxão e derrubou todos que estavam
segurando o laço. Isto foi só nos primeiros anos. Depois, no decorrer dos
tempos, não havia mais dificuldade para prendê-lo. Sebastião e Marcolino
prendiam-no com facilidade. Era de seis em seis meses. Isto durou trinta anos,
até à morte dele, quando já contava uns oitenta anos.
Joaquim Pereira da Cunha, nome completo, casado com
Maria Brasilina de Jesus. Tiveram nove filhos, sendo seis homens e três
mulheres. Nome dos homens: João, Sebastião, Joantônio, Luís, Raimundo e Manuel.
Nome das mulheres: Antônia, que tinha apelido Antoninha (minha mãe), Olívia e
Corina. João, sendo o filho mais velho, casou-se com Cecília e foi morar em
Mutum, um lugar que fica ao Norte de Minas. Sebastião casou-se com Maria,
apelidada Cota. Joãntônio casou-se com Maria, viúva de Manoel Lopes. Ela
morreu, e ele casou-se pela segunda vez com Augusta, viúva de Antônio Amorim.
Luís casou-se com Floripes. Raimundo casou-se com Antoninha, e Manoel casou-se
com Conceição. A filha Antoninha casou-se com José de Souza Costa, apelido Zeca
(estes foram os meus pais). Olívia casou-se com Marcolino. Corina casou-se com
Antônio, apelidado Antônio Carabineiro. Estes são os nomes dos filhos e filhas
de Joaquim Pereira da Cunha e de Maria Brasilina de Jesus (meus avós por parte
materna).
José de Souza Costa e Antônia
Pereira de Jesus tiveram doze filhos. O mais velho, Olavo; (2o)
Álvaro; (3o) Maria; (4o) Eurico [falecido, ainda jovem,
no Hospital Psiquiátrico da Cidade Barbacena, no Estado de Minas Gerais]; (5o)
Malvina; (6o) Antônio [que é o mesmo que escreve esta história
verídica]; (7o) Almezinda; (8o) Elmira; (9o)
Raimunda e Regina, gêmeas; (10o) Clemilda; e (11o)
Enedina.
A casa do Zeca, meu pai, era
muito frequentada por toda a vizinhança. Era uma casa de muita harmonia.(Desde
já esclareço que todos os filhos o chamavam pelo apelido, assim como também à
nossa mãe Antoninha. Esclareço também que, apesar da aparente intimidade,
chamando-os pelos apelidos, nós, filhos, os respeitávamos, pois eles eram muito
severos). Os quatro filhos homens tocavam instrumentos de cordas. Ainda vinham
alguns colegas trazendo seus instrumentos, para fazerem parte de nossa
orquestra. O tio Marcolino era o vizinho mais perto, a casa dele também era
muito harmoniosa. Ele tinha sanfona de oito baixos e tocava muito bem. Os
filhos de tio Marcolino tocavam sanfona e cavaquinho. O pai de tio Marcolino,
Manoel de Souza, tocava viola e cantava as músicas de batucadas dos negros
chamadas cateretês. Era uma casa
cheia. Em certas noites, nós nos reuníamos para formar uma só orquestra. Isto
foi na década de 1920 a 1930. Fazíamos baile, ora na casa de um, ora na casa de
outro. Mas, primeiro, tínhamos que rezar ladainha e terço. Todos eram muito
religiosos. A reza era rezada na sala de dentro, e a dança era na sala de fora.
Durante a noite, o povo dançava na mais perfeita ordem, e, quando queria tomar
café, comer broa de fubá, biscoito de polvilho de mandioca, tinha que ir à
cozinha, e, lá, tinha sempre café e broa de fubá de milho à vontade de todos.
Voltando ao João Argolão: Quando
o João Argolão veio de Ponte Nova para o Divino de Carangola, com sua família,
trouxe também seu irmão por nome Manoel, mais moço que ele. Seu irmão era
solteiro e ficou morando junto com sua família. Manoel, sendo tio de Joana,
começou a amá-la, e ficou mesmo apaixonado por ela. João Argolão, vendo que
aquele amor entre tio e sobrinha podia acabar mal, tratou de fazer o casamento.
Deu a parte melhor da Fazenda pra
eles morar. Desse matrimônio, nasceram cinco filhos: Antônio, Joaquim, Maria,
Manuela e Joaquina. João Argolão deu alguns escravos pra eles, como presente. Manoel começou a trabalhar com seus
escravos e formou uma boa Fazenda. Mas, não teve sorte de gozar de seu
trabalho, pois morreu ainda moço, deixando a riqueza pra viúva e os filhos. Sendo Joana ainda moça, logo foi pedida em
casamento. Casou-se com Sebastião Alves, que era um moço inteligente e muito
trabalhador. Sebastião Alves aumentou a riqueza, fez engenho de moer cana,
movido a água; fazia rapadura, cachaça; tinha também monjolo de fazer farinha
de milho. Era um movimento bonito. Desse matrimônio de Joana com Sebastião, seu
segundo marido, nasceram seis filhos, sendo cinco homens e uma mulher. Nome dos
homens: Pedro, Manoel, Francisco, Ramiro e Jovelino. Mulher: Vitalina.
Sebastião, ao envelhecer-se, ficou cego, mas, mesmo assim, não deixava de dar
bons conselhos aos seus filhos, que, todos os dias, reuniam-se em sua presença,
para tomar opinião sobre seus próprios negócios. E a Fazenda Cachoeira, que
tinha o nome de Fazenda Cachoeira dos Pereiras, ficou sendo chamada Fazenda
Cachoeira dos Alves, até o dia de hoje.
Esta história verídica foi-me
contada pela minha avó Maria Brasilina de Jesus, sendo eu ainda menino, na
idade de oito anos acima. Eu era muito curioso e queria saber de tudo, por
isso, ficava fazendo perguntas, não só à minha avó, mas a todos os mais velhos,
que tinham satisfação em me contar todo este passado, que eu trago em
recordação. Agora, neste ano de 1984, estando eu aposentado, já com os meus
setenta e quatro anos, não tendo nada a fazer, vou escrevendo esta história,
que já se passou há mais de cem anos, uma parte, e a outra parte, pouco mais de
cinquenta anos.
Mas,
continuando a história sobre a minha avó Maria Brasilina, recordo-me do meu
tempo de menino, quando minha mãe ia passar o domingo na casa de sua mãe, minha
avó Maria Brasilina, e, lá, já estavam tia Olívia, com os filhos; tia Cota, tio
Bastião e os filhos; os filhos de tio Joantônio, Geralda e Tião, que ficaram
órfãos de mãe e foram criados pela minha avó. Todos nós almoçávamos em casa,
mas, o jantar era na casa dela. Como era muita gente para comer, e ela tinha
uma grande gamela de pau, minha avó enchia a gamela de todas as iguarias de
comidas, e punha a gamela no meio da cozinha muito grande, para a meninada
comer, e, ali, o grupo reunido começava a discutir, um com o outro, e, assim,
minha avó vinha e separava, para cada um de nós, um montinho de sua saborosa
comida, e dizia: “– Agora vocês não precisam brigar; cada um tem o seu monte”.
Acabada a refeição, nós íamos brincar, e, assim, passávamos o domingo todo com
ela, e, de tarde, voltávamos para as nossas casas. Mas, sempre, eu ia à casa
dela, para saber das coisas do passado, que ela me contava, e, também, eu a
ajudava no fabrico de tecidos, pois ela fazia cobertores de lã de carneiro e de
algodão; fazia até roupa para se vestir; ela cultivava o plantio de algodão. E,
quando eu chegava, às vezes, com alguns dos primos, ajudava ela no trabalho.
Todos os netos a ajudavam no seu trabalho: ela fiando no tear e nós, meninos,
fazendo outro serviço, descaroçando o algodão em uma moendazinha, espécie de
uma engenhoca, que passava o algodão, separando os caroços. Dali, o algodão ia
ser batido, com um arco, espécie de bodoque, que batia o algodão até separar toda
a sujeira. Depois de batido, o algodão era preparado para se transformar em
linha. Para fazer linha, minha avó tinha um fuso. Fuso era o nome que se dava a
uma espécie de máquina, inventada na Antiguidade, para fazer tecidos. Era uma
espécie de piorra, com um cabo comprido; pegava-se um punhado de algodão, ia-se
rodando o fuso, esticando a linha, e enrolando num novelo, até ficar do tamanho
de uma laranja baía, das grandes. E, assim, era nosso trabalho, com nossa avó
Maria Brasilina. Meu Deus, como era bom aquele tempo que não volta mais! A
minha avó era uma pessoa muito amável, era muito carinhosa com os netos. Todos
nós a chamávamos de mãe e vovô Joaquim, de pai; motivo porque, meu pai, quando
casou com minha mãe, morou com os meus avós, e, nos primeiros anos de casado. E
nasceram meus dois irmãos mais velhos em casa de meus avós. Tio Manoel e tia
Corina eram crianças, ainda bem menininhos, e ensinaram aos meus irmãos a
chamar os avós de pai e mãe, e, aos nossos pais, de Zeca e Antoninha, conforme
eles chamavam. E, assim, todos nós irmãos, com o passar dos anos, continuamos
no mesmo ritmo.
Voltando ao João Argolão e
seus filhos. Quando João Pereira, vulgo Barba de Argolão, morreu, a Fazenda foi
dividida entre os filhos. Meu avó Joaquim, sendo o mais velho dos irmãos, ficou
com a Sede da fazenda, porque já morava perto. Os outros irmãos, que já eram
todos casados, tinham as suas residências mais longe. Quando eu entendi-me por
gente, ainda conheci a minha avó-bis, que morava com um filho, Sebastião Pereira.
Sebastião Pereira era casado com Maria Luisa. Tio Sebastião Pereira possuía
grande criação de carneiros e, todos os anos, quando chegava o Verão, ele
tosquiava os carneiros, tirava a lã, e a tia Maria fazia cobertores de lã de
carneiro, e fazia, também, de algodão; fazia até roupa de vestir em casa.
Naquela época, só se vestia roupa de algodão em casa ou no trabalho pesado;
para passear, usava-se roupa de seda, para as mulheres e, para os homens, roupa
de tecido de casimira inglesa (tecido da Caxemira), para os ternos, ou então
linho de boa qualidade. Tio Bastião Pereira, como era chamado por todos nós, e
tia Maria Luisa viviam muito felizes com seus oito filhos, morando perto, todos
muito reunidos, e, todos os dias, iam à casa dos pais, para pedir a bênção aos
pais, rezar ladainha, terço, juntamente com a avó, que era a minha avó-bis, já
velhinha quando a conheci. Minha avó-bis, que era chamada de vovó Toninha,
morreu aos noventa anos, sofreu o mal da velhice por vários dias; todos os
filhos, netos e bisnetos iam fazer quarto a ela, durante a noite. Eu, nessa
época, era bem menino, mas recordo-me o que meus pais e meus tios comentavam
sobre ela. Eles falavam, até em espécie de uma brincadeira: “– A Vovó Toninha
não quer morrer! Não tá podendo nem
virar na cama, e sempre rezando, pedindo a Deus, vida”. Vovó Toninha rezava
assim: “– Pela Vossa Divina Luz, me conservai, me ajudai!”. (O seguimento desta
história está nas páginas numeradas deste caderno: páginas 76, 77 e 78).
Os outros irmãos de meu avô
Joaquim Pereira venderam as suas heranças, por pouco mais de nada, e foram para
outras terras. João foi para Ponte Nova, e Manoel foi para o Norte de Minas.
Antônia e Luisa também venderam as suas heranças. Antônia era casada com o
irmão de minha avó Maria Brasilina, por nome Antônio Luís Alves, que eu não
conheci. Antônio Luís Alves morreu ainda moço, e a tia Toninha, como era
chamada, vendeu a herança para um sobrinho por nome Pedro Alves, que era o
filho mais velho do segundo casamento de Joana. E Luisa (esta eu não conheci)
mudou-se para um lugar por nome Vargem Alegre, município de Manhuaçu, e por lá
viveu, sem nunca voltar à Fazenda Cachoeira.