Quer se comunicar com a gente? Entre em contato pelo e-mail neumac@oi.com.br. E aproveite para visitar nossos outros blogs, o "Neuza Machado 2", Caffe com Litteratura e o Neuza Machado - Letras, onde colocamos diversos estudos literários, ensaios e textos, escritos com o entusiasmo e o carinho de quem ama literatura.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

XXII - MEMÓRIAS DE CIRCE IRINÉIA: O ACONTECIMENTO DO PRIMEIRO DIA DE AULA

XXII - MEMÓRIAS DE CIRCE IRINÉIA: O ACONTECIMENTO DO PRIMEIRO DIA DE AULA

NEUZA MACHADO

Dessa época da escola primária, maravilhosa!, me lembro do primeiro dia de aula. Papai havia me matriculado no Grupo Escolar, de manhã cedinho, quando fora para o trabalho. Como era o primeiro dia de aula, naquele mesmíssimo dia, resolveu voltar ao Sítio, para me buscar. Foi uma correria. Não havia roupa passada, não havia café coado. Papai constantemente saía para o trabalho sem o café da manhã, e nobre dele se dissesse alguma coisa, se reclamasse; a casa viria abaixo, com certeza. Como eu estava dizendo, foi um rebuliço sem tamanho, uma bulha das maiores. Resultado: saí com a roupa amarrotada (eu estava já com sete anos, completados no final do ano anterior), sem alimentação, mas feliz da vida com a novidade.

Tudo correu bem até um determinado momento. Lá pelas oito horas da manhã, mais ou menos, Antoinzinho Papai apareceu, em plena sala de aula, com um calderãozinho de comida para mim. Os alunos todos riram. As crianças da pequenininha cidadezinha estavam rindo de mim e eu (tão roceirinha!) não alcançava o motivo para tanta risada. Riso debochado de criança de cidadezinha machuca até a alma. Estavam rindo, porque, para elas, acostumadas com um outro padrão de vida, um padrãozinho um pouquinho inho mais elevado, a cena de um pai zeloso (o que certamente elas não conheciam), com um caldeirãozinho de comida na mão, devia ser deveras engraçada. Um pai levando comida para a filha, em pleno horário de aula (naqueles meados de século XX), era motivo de riso entre a criançada. Dei-me conta, ali, pela primeira vez, que a maldade humana existe até mesmo nas crianças.

A professora (santa professora!) percebeu a minha vergonha e levou-me para comer a comida de Jane Mamãe no refeitório da Escola. Engoli o alimento como se estivesse saboreando o manjar amargo da impotência ante a falta de compreensão dos adultos (de Jane Mamãe e de Antoinzinho Papai, incluindo a Diretora da escola, pois foi ela que permitiu a entrada de Antoinzinho Papai na sala de aula). Não será preciso dizer-lhe que fora Jane Mamãe a autora da idéia de levar-me comida (coitadinha!, estava com remorsos!) e que Antoinzinho Papai não passava de simples joguete em suas mãos. É bem verdade que eu estava em jejum, sem o café da manhã, mas havia outros meios, mais discretos, para entregar-me a marmita, como, por exemplo, chamar-me diretamente ao refeitório. Ali, eu poderia saborear a comida em paz, sem aturar o riso debochado das outras crianças. Afinal de contas, era o meu primeiro dia de aula!

Naquele dia, já em casa, chorei muito. Aquela humilhação sem sentido proporcionou-me (inconscientemente) traçar os rumos de meu futuro. Hoje compreendo a preocupação de Jane Mamãe, mas nunca compreendi o desleixo dela em relação aos pequeninos afazeres de um lar, tais como fazer o café da manhã para a família, passar a roupa dos filhos ainda pequenos e do marido, et cetera. Apesar do dinheiro mensal de Antoinzinho Papai não ter sido lá essas coisas, Jane Mamãe nunca trabalhou fora. Quem suava no trabalho pesado e tocava nas festas para ganhar dinheiro (e trabalhava em casa, compensando o alheamento de Jane Mamãe) era Papai. Não quero que você, meu passageiro leitor!, pense que eu seja apologista da mulher-escrava-do-lar. Sou a favor da liberdade da mulher, mas da liberdade consciente. Durante a minha vida toda, lutei por essa tal liberdade. Minha queixa de Jane Mamãe é muito simples: ela não fazia nada, não trabalhava em casa nem fora de casa, apenas dormia e comia, e brigava com as vizinhas, e só cozinhava as refeições da casa inspirada pelo seu próprio estômago.

Na Escola, o caso da marmita gerou risos durante muito tempo, mas serviu para que eu ganhasse o afeto da Professora (graças a Deus!), que depositou em mim sua atenção permanente. D. Clara (nome fictício) transformou-me em aluna-modelo. Foi a partir dessa particular atenção que comecei a interessar-me pelos estudos, principalmente, por Literatura e História. Eu não saía da biblioteca de nosso Clube de Leitura Vovô Felício. Adorava ler aquelas histórias fascinantes de Júlio Verne, as viagens extraordinárias de marinheiros corajosos, que saíam em busca de novas terras e muitas aventuras. Decorava todas as poesias dos poetas românticos, parnasianos e simbolistas e recitava-as nas grandes ocasiões, nas festividades escolares. Passei a viver em um mundo diferente, por intermédio dos livros, crescendo intelectualmente através daquelas palavras, e firmemente desejosa de fazer desse mundo irreal uma realidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário