XV - MEMÓRIAS DE CIRCE IRINÉIA: ANTOINZINHO PAPAI E JANE MAMÃE
NEUZA MACHADO
Conscientemente, afirmo-lhe, Meu Rapaz!, que Jane Mamãe, ao nascer, recolheu em si uma eterna insatisfação (uma incubada demência), um estranho descontentamento que a acompanhou até o seu final de vida na terra. Jane Briseides Mamãe nasceu e viveu neste mundo sempre descontente e fazendo infelizes àqueles que por ventura estivessem ao seu redor. Antoinzinho Papai dos Dons Musicais, ao contrário, enquanto vivo, predispôs-se para uma vida de felicidade perene (apesar do destempero de Mamãe). Antoinzinho Papai apaixonou-se por Mamãe (uma bela camponesa quando jovem), casaram-se, e o “nobrezinho” viu-se obrigado a aguentar o tranco, forçado a conviver com a infelicidade de Mamãe, suportando o seu mau-humor, sem reclamar um segundo sequer!, anos e anos, até que a morte o levou para descansar no Céu.
Antoinzinho Papai, mesmo com seus admiráveis dons musicistas, trabalhou muito para sustentar os filhos (enquanto esses estavam sob sua responsabilidade) e a Jane Mamãe, mas morreu pobre. Não amealhou, para a família, riquezas terrenas, mas legou-nos (a mim e meus irmãos) um grande amor pela vida (sem temer a morte certa!), e, ao morrer, passou-nos a responsabilidade de cuidar de Jane Mamãe e sua perene infelicidade, até a hora da morte dela. E a convivência final com Jane Briseides Mamãe não foi um legado fácil!
Antoinzinho Papai era a alegria e ternura em pessoa! Era um trabalhador e um músico sem igual. Tocava vários instrumentos (cavaquinho, bandolim, violão, viola, trombone e pistom). Estudou notas musicais e fez parte da Banda de Músicos de nossa cidade natal nos anos cinquenta do século XX. Depois lhe falarei de Papai.
Jane Mamãe ficou velhinha, muito muito velhinha, mas continuou reclamando da vida, do passado, dos parentes de Papai, até ao seu final de vida terrena. Quando Jane Mamãe começava a reclamar da vida, era cantilena ininterrupta durante três dias. Geralmente, a cantilena começava em uma sexta-feira, quando Antoinzinho Papai retornava do trabalho (ou das apresentações musicais, o motivo dos ciúmes de Jane Mamãe), e continuava até segunda-feira pela manhã (os dias e as noites, com raros intervalos), quando Antoinzinho Papai se aprontava para dirigir-se ao trabalho. Em semana de Lua Cheia, então!, não há o que comentar!, era um falatório só todas as noites. Somente Antoinzinho Papai aguentava a Jane Mamãe! A prole masculina, por causa de Mamãe, ajeitou-se fora da casa paterna, por meio de casamentos e ajuntamentos. Esta Circe Irinéia aqui (centenária, está lembrado?) optou precocemente também pelo casamento. Jane Mamãe não era de fácil convivência!
O passado foi um fantasma na vida de Jane Mamãe, principalmente os primeiros anos de casamento vivendo ainda na roça. Ainda hoje, não consigo esquecer a revolta que acompanhou os anos de existência de Jane Mamãe, mesmo admitindo nela a possibilidade de um provável desequilíbrio mental, sem tratamento médico, distanciado das Clínicas próprias para doentes mentais. Aliás, não se falava em tratamento psiquiátrico na casa de meus pais. Com todos os problemas familiares, de uma coisa tenho certeza: Antoinzinho Papai nutriu um amor imensurável por Jane Mamãe. E, certamente, carregou uma grande culpa pelos imaginários sofrimentos dela, e o peso da culpa o acompanhou até o fim. Pela minha ótica (talvez, destorcida), Antoinzinho Papai foi um grande marido (paciente e compreensivo), e um pai sem-igual. Não acumulou riquezas, mas trabalhou como um escravo para que o necessário não faltasse a Jane Mamãe.
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