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sábado, 3 de setembro de 2011

LITERATURA COMPARADA: "EDIPO-REI", DE SÓFOCLES x "ANTÓNIO MARINHEIRO, O ÉDIPO DE ALFAMA" DE BERNARDO SANTARENO


LITERATURA COMPARADA: “ÉDIPO-REI” DE SÓFOCLES x “ANTÓNIO MARINHEIRO, O ÉDIPO DE ALFAMA” DE BERNARDO SANTARENO

NEUZA MACHADO

"Quando se destrói a razão de uma existência humana, quando uma causa final e única cessa de existir, nasce o trágico. Dito de outro modo, há no trágico a explosão do mundo de um homem, de um povo, ou de uma classe”. (STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais de Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969: 147)

Para um estudo comparativo entre a forma da tragédia grega e a forma da dramaturgia moderna do século XX, passo a exemplificar com o Édipo-Rei, de Sófocles (tragediógrafo grego) em confronto com o António Marinheiro: O Édipo de Alfama, de Bernardo Santareno (teatrólogo português dos anos 50/60, já falecido).

Em primeiro lugar, há a necessidade de explicar que a forma literária da tragédia grega não sofreu continuidade através do tempo. A forma da poesia trágica à moda antiga (com todas as características textuais e de palco daquela época) ficou no passado, restrita às obras dos trágicos gregos. Com o passar do tempo, novas formas foram criadas, o texto em prosa para o teatro substituiu o texto em versos, a presença do coro na escrita teatral não existe mais, a idéia de Destino comandando as ações do homem (herói trágico) foi abandonada pelos dramaturgos (graças a desvitalização do mito e a ascendência do cristianismo) e substituída pela idéia moderna do livre-arbítrio e da luta contra o ônus da culpa difundido pela Igreja Romana nos anos iniciais da Era Moderna. Neste princípio de século XXI, os textos teatrais que impõem forte carga emocional estão longe da forma conhecida na Antiguidade Clássica. As tragédias, desde o início do século XX (um século de guerras mundiais e inúmeras guerrilhas particulares), transformaram-se em ocorrências do cotidiano, passaram a fazer parte da realidade objetiva, estão estampadas nos jornais e em outros meios de comunicação, como a televisão e a Internet. Os acontecimentos trágicos, tão significantes nos palcos antigos, foram substituídos, nos palcos de hoje, pelos chamados dramas modernos, os quais seguem os ditames da realidade objetiva do nosso caótico momento histórico.

Quanto a uma comparação entre tragédia grega e drama moderno, na peça trágica, Édipo-Rei, o trágico se instaura a partir da terrível revelação, revelação esta que confirmou os presságios do oráculo, ou seja, a partir do momento em que Édipo e Jocasta descobrem que são, na verdade, filho e mãe vivendo uma relação incestuosa. Comparando a minha exemplificação com as palavras de Staiger, posso dizer que o mundo dos dois explodiu ao tomarem conhecimento da dura realidade. Esse trágico acontecimento estendeu-se também ao povo, pois afinal os dois eram os reis desse povo.

Algo parecido acontece na peça António Marinheiro, o Édipo de Alfama, de Bernardo Santareno. Depois de uma briga, em uma taberna de Alfama, um bairro de pescadores da cidade de Lisboa, em Portugal, o jovem António Marinheiro, ali embriagando-se, em um intervalo de suas obrigações como marinheiro de um navio mercante, no auge de uma briga mata um velho pescador, morador do local. Durante o inquérito, ao se deparar com a viúva do pescador, sente por ela uma irresistível atração, e é também correspondido. Ao final da peça, ambos descobrem que são na verdade filho e mãe, e que António Marinheiro havia assassinado o próprio pai. À semelhança do Édipo de Sófocles, o António (nascido no dia de Santo Antônio, abandonado em um barco pela avó Bernarda e, no mesmo dia, achado por marinheiros que o criaram e a ele deram o nome e sobrenome de António Marinheiro) volta à sua terra natal, já adulto, e é exatamente ali que se vão desenrolar os acontecimentos dramáticos, os quais guiarão o enredo teatral do século XX, mas, com um final diferente submetido às leis do livre-arbítrio (ao contrário do Édipo, pois este submeteu-se às leis do Destino, leis severas que regiam as ações humanas na Antiguidade Clássica).

Comparando as duas peças (a antiga e a pós-moderna/segunda metade do século XX) pelo ponto de vista de Staiger, posso dizer que, além das semelhanças, há diferenças marcantes: enquanto no texto trágico de Sófocles observa-se um mundo voltado para a riqueza, o cenário, onde se desenrola o amor entre António e Amália, é de ostensiva pobreza. Mesmo assim a matéria trágica se instaura, pois, com a descoberta, o amor entre os dois sofre um tremendo abalo e, consequentemente, acontece o rompimento, uma saída natural para o conflito. Assim, para o espectador do século XX, mais dramático do que a morte de Jocasta e do sacrifício de Édipo furando os olhos (no texto de Sófocles), é o abandono de António e o desespero de Amália, chamando pelo amante e não pelo filho.

No texto de Bernardo Santareno, o momento da revelação é o momento crucial, o clímax, uma vez que Amália não aceita o fato de ser mãe do rapaz. Este é o momento trágico pós-moderno. O que vem a seguir (o abandono de António, o desespero de Amália) seria então uma espécie de situação-limite, impelindo os personagens centrais para uma provável purificação (isto, se olharmos a mimese do texto pelo ponto de vista antigo). No caso de Édipo e Jocasta, o Destino à moda pagã (com D maiúsculo) impunha essas atitudes, uma vez que tais impulsos faziam parte do modo grego de solucionar os problemas humanos. No António Marinheiro (recriação teatral do tema do Édipo, início da pós-modernidade – meados do século XX), os personagens centrais já não possuem aquela ideia de destino nos moldes antigos, e, assim, optam pelo livre-arbítrio (fenômeno da Era Moderna, ainda atuando neste início de pós-modernidade): o António parte, retomando a vida de marinheiro e Amália fica a gritar, chorando e chamando pelo marido, jamais pelo filho, pois ela não se sentia culpada, uma vez que fora enganada pela mãe. Esta, a Bernarda, à época do nascimento de Antônio, lhe contara uma história falsa, dizendo-lhe que a criança era uma menina, que havia falecido durante o parto, quando na verdade era um menino, abandonado por ela, a avó, em um barco de pescadores (ler os motivos para o abandono da criança em: SANTARENO, Bernardo. António Marinheiro: O Édipo de Alfama).

"Nem toda desgraça é trágica, mas apenas aquela que rouba do homem seu pouso, sua meta final, de modo que ele passa a cambalear e fica fora de si." (Emil Staiger. Conceitos Fundamentais de Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969: 148)

Utilizando-me de outras palavras, o trágico seria aquele momento em que o homem sente o seu mundo desmoronar e fica fora de si. No caso de “Édipo-Rei”, o personagem trágico ficou sem ação, seu futuro sofreu um abalo, e ele se mutilou, depois do suicídio de Jocasta. Na peça pós-moderna de Bernardo Santareno, o António Marinheiro preferiu fugir ao invés de enfrentar com heroísmo a fúria do povo de Alfama, enquanto que Amália ficou em casa, chorando e gritando por seu amor, à mercê do povo que a acusava, sem avaliar a sua inocência diante do ocorrido.

"Para que o trágico cause efeito e espalhe sua força fatal, deverá atingir um homem que viva coerente com sua idéia e não vacile um momento sobre a validez desta idéia". (Emil Staiger. Conceitos Fundamentais de Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969: 149)

Neste aspecto reside a grande diferença entre a verdadeira forma da tragédia grega (centrada no Destino, deus da mitologia antiga) e a forma da dramaturgia moderna do livre-arbítrio. O Édipo possui uma profunda firmeza de pensamento e jamais renegaria suas próprias atitudes. Por este ponto de vista, a peça de Bernardo Santareno não poderá ser avaliada como uma peça trágica, ela, na verdade, se adéqua ao que chamamos de drama moderno. O caráter de Antônio Marinheiro, ao longo das peripécias dramáticas, não é assim tão firme. Há inclusive uma leve insinuação de homossexualismo entre ele e Rui, um outro personagem, amigo e companheiro de aventuras marítimas (atentar para os ciúmes de Rui, personagem representativo do oráculo moderno). E ele vacila diante do tumulto, abandonando Amália à própria sorte, à sorte desgovernada da realidade do século XX.

"O trágico surpreende o herói dramático inesperadamente". (Emil Staiger. Conceitos Fundamentais de Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969: 149)

Aqui há semelhanças: O herói trágico (ou mesmo o personagem da dramaturgia do século XX) não se encontra preparado para enfrentar as tragédias que virão. Isto, porque ele se preocupa mais com um determinado problema (no caso de António Marinheiro, como enfrentar a fúria dos moradores de Alfama?), ou um determinado deus (no caso de Édipo, o deus Destino comanda as suas ações), ou uma determinada ideia, e não vê mais nada a não ser o que está em sua mente. Quando o momento trágico se instaura, pega o herói antigo desprevenido (ou o personagem pós-moderno).

Repensando as semelhanças e diferenças entre os dois textos (o antigo e o pós-moderno), adianto que, apesar da influência de Sófocles em Bernardo Santareno, o texto da peça teatral portuguesa possui qualidade artístico-dramática indiscutível. Não poderá em hipótese alguma ser considerado uma mera repetição de um texto clássico de altíssimo nível, como é o texto de Sófocles. Assim como a leitura do Édipo exigiu reflexões teóricas de gerações e gerações de leitores (não estou a referir-me a espectadores, este é um outro assunto) até ao nosso momento, o António Marinheiro também exigirá que seus futuros leitores façam profundas reflexões sobre a problemática existencial do homem do século XX (não apenas do homem português).


(Texto registrado de Neuza Machado. Este texto pertence aos Apontamentos de Teoria Literária e Crítica Literária, um livro que está sendo elaborado pela autora e que será publicado em breve por sua editora particular, NMachado, editora da autora registrada no ISBN – Rio de Janeiro
).

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