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quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

VIII - NARRADOR: HERÓI PROBLEMÁTICO




VIII - NARRADOR: HERÓI PROBLEMÁTICO

NEUZA MACHADO



Não penso na narrativa ficcional como narrativa épica. Estudos atuais não rejeitam o parentesco, mas não incluem o modelo desenvolvido em prosa no gênero épico. Como já afirmei antes, há matéria épica nas narrativas ficcionais modernas (Era Moderna), mas não há a forma que caracteriza o narrar épico. Isto não quer dizer que não existam remanescentes da literatura épica nas estéticas literárias modernas e pós-modernas. Há, ainda, poemas épicos, desenvolvidos por uma determinada ótica, destacando-se a forma que os caracteriza (fenômenos estilísticos). Apenas os modelos modernos e pós-modernos encontram-se submetidos às diferentes manifestações[1] literárias, que se desenvolveram desde o advento da Era Moderna até aos dias atuais. Reafirmando, isto não quer dizer que não aceito as nomenclaturas de Lukács e Goldmann, mesmo reconhecendo que as originais idéias de Anazildo Vasconcelos (semiólogo brasileiro) modificaram o que se estabeleceu como Gênero Épico, a partir de Aristóteles. Não pretendo aprofundar-me no assunto, mas conheço as diferenças. Apenas, continuarei apoiada nas noções sociológicas de Lukács e Goldmann, nesta fase de meus pensamentos, porque entendo que o herói problemático, idealizado por Lukács e reelaborado por Goldmann, reflete o personagem ficcional Augusto Matraga (na última seqüência) e, principalmente, reflete o narrador roseano, revelando-me a face do narrador moderno.

Exemplos a partir da Sociologia da Literatura:

Romance moderno:

Situado entre dois pólos, o romance moderno possui uma natureza dialética, porque participa, por um lado, da comunidade fundamental do herói e do mundo, e, por outra parte, de sua ruptura insuperável. (cf. Lukács, op. cit.)

Esta narrativa ─ A Hora e Vez de Augusto Matraga ─ revela este processo, porque toda a primeira fase do herói Augusto Matraga é centralizada em um sertão autenticamente comunitário, pois personagem e mundo possuem ainda valores autênticos, mesmo que se observe algumas interferências das exigências substanciais da degradação burguesa. Isto é compreensível porque o narrador moderno (e o narrador em questão é moderno, ou melhor ainda, já transitando para o pós-moderno) não continuará memorizando valores comunitários até o final de seu ato de narrar. A assinalada degradação moderna vai corromper os ideais autênticos do narrador, impondo novas formas narrativas, mesmo que este continue ressaltando a pureza de um espaço singular, por meio da recordação. O arraial do Murici, não o sertão roseano, é o espaço que representa a face degradada da sociedade brasileira de meados do século XX.

Comunidade (comum-unidade):

Semelhança suficiente para permitir a existência de matéria épica dentro do romance.
(Como já afirmei, há na narrativa em questão matéria épica em estado bruto: no sertão roseano confundem-se demandas, superstições, misticismos; o sobrenatural é inerente ao homem sertanejo).

Oposição constitutiva:
(Caracteriza o fundamento dessa ruptura insuperável)

A oposição constitutiva que fundamenta essa ruptura insuperável entre o personagem e o mundo origina-se da diferença de natureza entre a degradação do personagem e a degradação do mundo, simbolizada pelo arraial do Murici. (Indutores da degradação: o major Consilva; a ambição dos bate-paus; o narrador reflexivo, pois conhece os males desta degradação que atinge a sua criatura).

A narrativa roseana possui uma dialética questionadora, justamente porque participa das duas degradações: conhece a problemática do mundo que a cerca — a matéria épica resistindo às convenções modernas —, mas, também, tem consciência da ruptura insuperável que existe entre ambos.

O herói problemático do romance é um louco ou um criminoso, em todo caso, como já dissemos, um personagem problemático, cuja busca degradada e, por isso, inautêntica de valores autênticos num mundo de conformismo e convenção, constitui o conteúdo desse novo gênero literário que os escritores criaram na sociedade individualista e a que chamamos “romance”.
[2]

Esta busca caracteriza as narrativas ficcionais modernas, mesmo quando estas não se enquadram na forma romanesca, como é o caso da narrativa A hora e vez de Augusto Matraga (considerada embrião de romance, por alguns, ou novela, para outros).

Esta busca do narrador de Guimarães Rosa, refletida no personagem Augusto Matraga, é degradada, inautêntica (conferir Luckács), porque o condutor da narrativa é um ser sozinho, um indivíduo ilhado num mundo de conformismo e convenção, onde o valor maior é o capital. Ele procura valores humanos autênticos no mundo burguês e não os encontra e, quixotescamente, procura recuperar, por intermédio do texto literário, um espaço autêntico que fez parte de sua primeira fase de vida — suas raízes, seu berço —; procura reavivar o passado, mas a memória é falha. Assim, detém-se na recordação (de novo ao coração) nas etapas seguintes, mas submetido conscientemente à forma ficcional (em prosa) que o faz transformar o herói em personagem. O narrador conhece as regras da narrativa moderna, reconhece-se um ser problemático enquanto personagem, e, por isto mesmo, prevê seu próprio fim. Criativamente, transfere esse fim para o seu personagem Nhô Augusto.

Seria uma solução (pós-)moderna?

Como já disse antes, Goldmann elabora suas pesquisas sobre o romance a partir de Lukács e Girard. Há um ponto de convergência entre os dois, pois, para ambos, o romance é a história de uma busca degradada de valores autênticos, por um herói problemático, num mundo degradado.
[3]

A degradação do mundo romanesco é o resultado de um mal ontológico mais ou menos avançado, correspondendo, dentro do mundo romanesco, um incremento do desejo metafísico.
[4]

Os diversos modelos de romance se baseiam na idéia da degradação. A degradação do mundo romanesco, o progresso do mal ontológico (desejo de valores autênticos, nomenclatura de Lukács; desejo de valores de uso, nomenclatura de Lucien Goldmann) e o desenvolvimento do desejo metafísico são mediatizados, e isto aumenta a distância entre o desejo metafísico e a busca autêntica, ou seja, aumenta a distância da busca da transcendência vertical (o que se poderá entender como reencontro da autenticidade).

Na ficção roseana, há a argumentação reflexiva e questionamento, mas seus personagens (Matraga e o narrador), embora degradados, sabem que possuem valores autênticos (pelo menos, o narrador sabe), mas não reencontram a autenticidade que procuram (os falsos valores, que sitiam o sertão e impedem esse reencontro). Por isto, a ruptura entre o personagem e o mundo, representados por Matraga e o arraial do Murici, é insuperável. O narrador reconhece esta impossibilidade de reencontro ao colocar seu Joãozinho Bem-Bem no caminho de Nhô Augusto. Ele sabe que seu personagem jamais retornará ao arraial e inventa uma poderosa figura, seu Joãozinho, para impedir o retorno. Seu Joãozinho é o mediador (personagem autenticamente ficcional) que se coloca entre o herói e sua procura de autenticidade.

— Mano velho, o senhor gosta de brigar, e entende. Está-se vendo que não viveu sempre aqui nesta grota, capinando roça e cortando lenha... Não quero especular coisa de sua vida p’ra trás, nem se está se escondendo de algum crime. Mas, comigo é que o senhor havia de dar sorte! Quer se amadrinhar com meu povo? Quer vir junto?
[5]

Nesta fase dos acontecimentos, o personagem já está em vias de abandonar sua face carismática reprodutora do carisma do sertanejo, para assumir a sua condição ficcional — não mais representação da realidade, mas criação literária. A criação literária ficcional possui um mecanismo que reproduz a realidade, mas especialmente esta narrativa de Guimarães Rosa ultrapassa-a, atingindo a camada mimética caracterizadora de autêntica e reconhecida obra de arte.

Em relação ao narrador-personagem — o verdadeiro herói problemático de Guimarães Rosa poderá ser conceituado a partir do herói problemático das narrativas modernas, se penso a nomenclatura de George Lukács —, o agente mediador é o sertão. Assim como Dom Quixote, ele busca valores autênticos em seu passado próximo, e o seu passado é o sertão. Sertão onde há homens valentes, repletos de qualidades louváveis (valores de uso), sertão que já não faz parte de sua existência atual (seu ambiente social).

Como se torna impossível um retorno ao passado, o narrador de Rosa se degrada (atentar para a etimologia da palavra; não há aqui nenhuma terminologia com intenção pejorativa), degradando o personagem. Ele sabe que sua busca é inútil e a transfere para Nhô Augusto como morte, fim caracterizador do desenlace do herói problemático. Matando sua criatura, o escritor (já conceituado alhures como sertanejo) do século XX livra-se ficcionalmente do estigma da degradação, alcançando a transcendência vertical que será explicada a seguir.

Girard postula a idéia de que o romancista, no momento em que escreveu sua obra, abandonou o mundo da degradação, para reencontrar a autenticidade, a transcendência vertical.
[6] O Artista consegue reencontrar a autenticidade que busca por intermédio de sua obra, que possui os valores que estão no mais profundo de seu ser (os valores autênticos da obra são os valores autênticos do Artista).

Para Lukács,

Toda forma literária nasce da necessidade de exprimir um conteúdo essencial. Se a degradação romanesca fosse verdadeiramente ultrapassada pelo escritor, e mesmo pela conversão final de certo número de heróis, a história dessa degradação não seria mais que a de um incidente fortuito, e sua expressão teria, no máximo, o caráter de uma narrativa ou relato mais ou menos divertido.
[7]

Em outras palavras, a forma literária ficcional nasce da necessidade interior do Artista moderno de exprimir todo o seu manancial de criatividade. Ele descreve o que se localiza em sua imaginação criadora. Não há necessidade de condições sociais históricas para retratar a degradação do personagem; no decorrer de sua atividade criadora não será necessário que ele exprima seus próprios valores essenciais.

Contudo, a ironia do escritor, sua autonomia em relação aos seus personagens, a conversão final dos heróis romanescos, são realidades incontestáveis.
[8]

Lukács desenvolve a idéia de que, na proporção em que a trama romanesca é o fundamento de um universo onde impera a degradação, essa autonomia do Artista, em relação aos personagens, não poderia deixar de ser degradada, abstrata, conceptual (no sentido de idealizada) e não vivida como realidade concreta. Por meio de um subentendido humor (o que Lukács chama de ironia), ele comanda o personagem (conhece seu caráter problemático), e comanda a sua própria consciência (pois conhece o caráter abstrato e, por isso, insuficiente e degradado de sua consciência).

Penso que, no caso da ficção roseana, o Artista delega poderes ao narrador, para que atue como intermediário entre os dois espaços: o sertão e o mundo burguês. Por isto, a narrativa abandona o tom memorialista (sintagmático), adquirindo nuanças ficcionais e poéticas (paradigmáticas). A autonomia do ficcionista moderno abandona a reprodução da realidade sertaneja e passa a comandar a própria narrativa, personagem e narrador por meio do questionamento. Porque questionando ideologias e dialetizando-as, questiona a sua própria consciência burguesa. Se o narrador é primitivo e, ao mesmo tempo, burguês (suas faces/fases dentro da narrativa), penso naquele que o idealizou como um cidadão burguês, ressaltando o fato de que suas origens de vida se ligam às comunidades fechadas do passado (Ainda peço a atenção do leitor: aqui não há intenção pejorativa relacionada à palavra “burguês”). Buscando valores de uso, seu narrador exige que a narrativa prossiga, até o fim, representando o espaço puro do sertão, mas é submetido pelo mundo que o adotou (ou foi adotado por ele) e, inconscientemente, talvez, deixa transparecer sua desorientação de Artista moderno na desorientação verbal
[9] do narrador. A degradação passa para o discurso narrativo, marcadamente ficcional, quando o personagem Nhô Augusto começa a mudar sua opinião no que diz respeito aos seus valores carismáticos. Portanto, o diferente da narrativa (o que irá representar o ficcional) é o texto, a única camada visível da obra literária. O texto ─ repleto de questionamentos, exclamações, reticências, adotando um discurso poético com versos, cantigas sertanejas, e tantos outros recursos ─ caracteriza o imaginário-em-aberto do Ficcionista do século XX, ansioso por dar forma ao Vazio (Vazio Bashôniano, Mundo do Silêncio, repouso fervilhante bachelardiano, ou outra terminologia que seja do gosto do leitor) de sua mente privilegiada que se recusa a aceitar as questões ideológicas da sociedade que o cerca.


[1] SILVA (1984): 26 - 51
[2] GOLDMANN (1976): 9
[3] LUKÁCS. In.: GOLDMANN (1976): 8
[4] GIRARD. In.: GOLDMANN (1976): 11
[5] ROSA (1986): 37
[6] GIRARD. In.: GOLDMANN (1976): 13
[7] LUKÁCS. In.: GOLDMANN (1976): 13
[8] Ibidem
[9] BENJAMIN, Walter. In.: OS PENSADORES. Textos escolhidos. São Paulo: Abril cultural, 1980: 60

MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez. Rio de Janeiro: NMachado, 2006. (ISBN 85-904306-2-6)

Um comentário:

  1. adorei este seu trabalho sobre o heroi problematico, sou estudante de letras e fiz um ensaio sobre este tipo de herói em Dom Quixote, e até utilizei umas sitações que você também utiliza. MuITO BEM! PARABÉNS! =D

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