O PODER DE MANDO DO "ONTEM ETERNO" (SÉCULO XX) EM CONFRONTO COM O ATUAL PODER POPULAR (INÍCIO DO SÉCULO XXI)
NEUZA MACHADO
O personagem “herdeiro do ontem eterno” de Guimarães Rosa (em A Hora e Vez de Augusto Matraga), depois da “surra” sofrida, depois da perda do "antigo poder de mando", começa a pensar em uma nova forma de reestruturar-se. A seguir, faz-se necessário defender-se contra o espaço (o mundo com suas fortes ideologias) e os acontecimentos (imprevisíveis), mas o espaço social do século XX, nesta etapa da narrativa, escamoteia tal pretensão, impondo-lhe a substância religiosa que sobrevive sob diversos matizes no sertão.
Cavada pelo pensamento veio à tona a perdida religiosidade que se escondia no passado, plantada na infância pela avó que o criara, agora estimulada pela preta velha Quitéria que lhe salvara a vida. Dogmas religiosos, atitudes de vida, apelos morais, imposições normativas: cercas conceituais limitadoras e frustrantes.
O narrador memorialista recomeça (por enquanto) ainda por via sintagmática.
Repensemos o narrado: No princípio da narrativa (primeira sequência), a representação do poder hierárquico em decadência (o poder do “herói” em decadência). O personagem ― Augusto Matraga ― prestes a perder a “aura” guerreira. A autoridade do “ontem eterno”, na primeira seqüência sintagmática, já em vias de extinção em um mundo sertanejo que procurou se conservar comunitário. Com mais justiça, já houve essa ruptura. O espaço comunitário do sertão mineiro (herdeiro de normas medievais aqui “plantadas” no século XVI) resistiu às investidas do progresso moderno (Era Moderna) durante vários séculos, mas no século XX se encontrava nos últimos estágios de decomposição. Fazia-se urgente reerguer-se.
A “queda” sócio-vivencial do personagem Nhô Augusto, no momento da proposta de concepção ficcional (meados do século XX), permitiu ao escritor Guimarães Rosa simbolizar os momentos críticos da vida do brasileiro (sertanejo ou não). Homem de muitos talentos, Guimarães Rosa soube recriar esses momentos em seus incomuns textos ficcionais.
O segundo segmento da narrativa (depois da “queda ribanceira abaixo”), já nos apresentando um Nhô Augusto carismático, propicia-nos repensar a questão das grandes “quedas” sócio-políticas acontecidas no Brasil do século XX: É lícito observar que, depois das grandes desgraças sociais, surgem os líderes carismáticos procurando reordenar a desordem (no caso dos líderes carismáticos políticos de meados do século XX, todos tinham suas origens bem plantadas no poderoso “ontem eterno”; ainda estavam presos aos seus sociais nomes ilustres; ainda se portavam como “pais” dos pobres; ainda não eram autênticos líderes representantes da classe dos oprimidos; ainda não eram líderes “irmãos” dos pobres).
Nhô Augusto, enquanto um elevado personagem representante do “ontem eterno” sertanejo, pensa em uma nova forma de preservar o poder pessoal momentaneamente extraviado. Não o antigo (o social), mas um poder que o eleve acima do comum dos mortais, pois o narrador do século XX (um narrador interativo) agora e temporariamente se submete à religiosidade e ao comando da narrativa de espaço (ou seja, aos dogmas ideológico-religiosos do momento histórico do personagem sertanejo)
Um dia o personagem Nhô Augusto (submetido às rápidas transformações ideológicas do século XX) resolveu confessar-se (repensar o poder político da Igreja Católica do século XX). O padre veio, trazido pelos pretos, às escondidas. O novo homem que emergia da carcaça amassada do antigo e sanguinário Senhor-de-terra poderoso necessitava da absolvição de seus pecados, do perdão daquele Deus do qual estivera tão distanciado. O padre o absolveu e garantiu-lhe que Deus não desampara os que se arrependem. Por intermédio do padre, a voz do pensamento religioso impôs seus sacralizados preceitos.
“Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina de sol quente, que às vezes custa muito a passar, mas sempre passa. E você ainda pode ter muito pedaço bom de alegria... cada um tem a sua hora e vez: você há de ter a sua” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).
Ora, o carisma significa o “dom da graça”. Somente os privilegiados, os líderes poderosamente dotados de milagres e revelações, feitos heróicos e êxitos no que se propõem a fazer, o possuem. Assim, o personagem sertanejo, de ficção do século XX, que acabara de sofrer uma “morte” sócio-substancial, percebe por intermédio das palavras do padre a sua chance de reestruturar-se (de readquirir uma outra qualidade de poder).
Para este recomeço se necessita de um “novo” revestimento para o denominado personagem ficcional de meados do século XX, e de um “novo” (diferente) cenário (político-religioso). Por tal motivo, o narrador transporta o cenário para um sítio que Nhô Augusto possuía e nem sequer conhecia, perdido no sertão (sítio = dimensão do poder religioso). Nhô Augusto levou consigo os pretos samaritanos que a ele se apegaram e não o quiseram largar.
“Ao sair, Nhô Augusto se ajoelhou, no meio da estrada, abriu os braços em cruz, e jurou: — Eu vou para o Céu, e vou mesmo, por bem ou por mal!... E a minha vez há de chegar... Pra o Céu eu vou, nem que seja a porrete!...” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).
Seria o aparecimento do líder carismático oriundo do “ontem eterno”? À imitação de Jesus Cristo, Nhô Augusto sai em peregrinação levando consigo os primeiros apóstolos. Seria Nhô Augusto, um reconhecido personagem “herdeiro do ontem eterno”, personagem ficcional de meados do século XX, realmente o autêntico líder carismático de que nos fala Weber?
Procuremos entender, segundo Weber, o que é carisma:
“1o) Os líderes naturais nas dificuldades foram os portadores de dons específicos do corpo e do espírito, dons esses considerados como sobrenaturais, não acessíveis a todos.
2o) O carisma só conhece a determinação interna e a contenção interna. O seu portador toma a tarefa que lhe é adequada e exige obediência a um séquito em virtude de sua missão.
3o) O carisma vive neste mundo, embora não seja deste mundo.
4o) O carisma, e isto é decisivo, sempre rejeita como indigno qualquer lucro pecuniário que seja metódico e racional. Em geral, o carisma rejeita todo comportamento econômico racional.
5o) Para fazer justiça à sua missão, os portadores do carisma, o mestre bem como seus discípulos e seguidores, devem manter-se distantes das ocupações rotineiras, bem como distantes das obrigações rotineiras de família” (Weber).
Nhô Augusto, se não possuía todos estes pré-requisitos carismáticos, estava no caminho de os adquirir.
“E assim se deu que, lá no povoado do Tombador (...) apareceu, um dia, um homem esquisito, que ninguém podia entender.
Mas todos gostaram dele, porque era meio doido e meio santo; e compreender deixaram para depois”. (A Hora e Vez de Augusto Matraga)
Este trecho remete à primeira afirmativa de Weber, pois se Nhô Augusto era “meio doido e meio santo”, possuía “dons específicos do corpo e do espírito”, dons que, na maioria das vezes, são considerados sobrenaturais.
Na segunda afirmativa, o autor diz que o carisma só conhece a determinação e a contenção interna.
Quando o Tião da Thereza, personagem providencial, passou lá pelo Tombador à procura de trezentas reses e o encontrou, logo foi dando as notícias que ninguém tinha pedido. Nhô Augusto sentiu a ferida se reabrindo, mas se conteve, e pediu ao Tião que esquecesse o encontro e continuasse vendo-o como um homem que já morrera: “Não é mentira muita, porque é a mesma coisa em como se eu tivesse morrido mesmo... Não tem mais nenhum Augusto Esteves das Pindaíbas, Tião...” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).
Verdade. Este carismático não é Nhô Augusto das Pindaíbas e do Saco-da-Embira. Este poder carismático representa uma outra face do Brasil incrustado no sertão, representa uma camada do povo sertanejo repleno de experiências e normas religiosas. Representa as oscilações ideológicas do próprio narrador roseano. Representa o oposto do homem-mau ― Augusto Esteves ―, ou seja, o homem-bom, o carismático.
Se há desprezo no olhar do Tião ― personagem da anterior sequência ―, há, por outro lado, a determinação na atitude de Nhô Augusto. “Sim, era melhor rezar mais, trabalhar mais e escorar firme, para alcançar o reino-do-céu” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).
“O carisma só conhece a determinação interna e a contenção interna” (segunda afirmativa). O “carisma vive neste mundo, embora não seja deste mundo” (terceira afirmativa).
Na quarta assertiva, Weber informa que o carisma rejeita lucros pecuniários. Não restam dúvidas: Nhô Augusto já desenvolvera seu lado carismático.
“Trabalhava que nem um afadigado por dinheiro, mas, no feito, não tinha nenhuma ganância e nem se importava com acrescentes; o que vivia era querendo ajudar os outros. Capinava para si e para os vizinhos do seu fogo, no querer de repartir, dando de amor o que possuísse” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).
Quanto à última afirmação, que os carismáticos devem manter-se distantes dos laços deste mundo:
“Quem quisesse, porém, durante esse tempo, ter dó de Nhô Augusto, faria grossa bobagem, porque ele não tinha tentações, nada desejava, cansava o corpo no pesado e dava rezas a sua alma”.
“Também não fumava mais, não bebia, não olhava para o bom parecer das mulheres, não falava junto em discussão” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).
Os dogmas religiosos impuseram, até aqui, atitudes de vida. Encontra-se o narrador preso à exterioridade da narrativa, ao desejo de retratar os fatos retirados da matéria histórica.
Em breve, o contador de estórias despertará e caminhará sob o domínio do narrador moderno (aquele que faz parte do mundo desordenado do final da Era Moderna já se distanciando historicamente dos valores da medieva ordem do sertão mineiro). Em breve, o Artista ficcional dará uma nova vida aos personagens. Em breve, Nhô Augusto se transformará em personagem ficcional (¹ personagem exemplar) e o narrador passará a centralizar a narrativa.
Repensando a pergunta, depois das informações de Weber: Seria Nhô Augusto, um reconhecido personagem “herdeiro do ontem eterno”, personagem ficcional de meados do século XX, realmente o autêntico líder carismático de que nos fala Weber?
Resposta: Sim. Nhô Augusto representa o carismático oriundo do poder do “ontem eterno” de que nos fala Weber (por isto, ele não se realiza como carismático, sendo eliminado ao final da narrativa).
Historicamente, a seguir, o Carismático do Século XXI, como verdadeiro representante de oitenta por cento do povo brasileiro subjugados ao poder do “ontem eterno” (oriundo também ele desse mesmo povão), faria a sua entrada triunfal no amplo cenário político do Brasil. Max Weber não conheceu este Carismático do século XXI, portanto não pode desenvolver uma teoria sobre esta outra face do carisma (não mais guerreiro, não mais religioso).
Penso em um nome para o carisma deste diferenciado Líder Popular Brasileiro desses anos iniciais do Terceiro Milênio (um vitorioso sem diploma universitário, detestado pela pequena elite do “ontem eterno” e pelos representantes legais do catolicismo): poderia esta teórica literária tupiniquim, evidentemente com o aceite de seus pares, designá-lo como “Carismático Pós-Moderno”?
MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6
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