A INEVITÁVEL DINÂMICA DO NARRADOR FICCIONAL DO SÉCULO XX
NEUZA MACHADO
O narrador de Guimarães Rosa (A Hora e Vez de Augusto Matraga) transmite as notícias do sertão arcaico — sertão como distância e fundamento —, e mostra que o poder meio primitivo dos donos-de-terra, nos sertões brasileiros, foi uma constante e, talvez, ainda o seja em virtude de o sertanejo ser muito apegado às tradições e aos valores antigos. Graças a esse apego a arte de narrar ainda sobrevive em Minas Gerais, e as figuras que se sobrepuseram ali em força e poder político alcançam ― ficcionalmente ― níveis lendários, equiparando-se aos notáveis heróis registrados nas Literaturas de todos os tempos.
As “experiências de vida”, ditas por Walter Benjamin, são relatadas em sucessivas gerações. É inerente ao sertanejo o hábito de contar estórias, passar para os mais jovens as “experiências” dos corajosos, promover normas de vida, ensinar, aconselhar e incentivar à geração futura o desenvolvimento de atos heróicos. Por esta ótica o povo sertanejo de Minas Gerais mantém um vínculo permanente com os povos primitivos.
O narrador roseano, em princípio, capta essa matéria remanescente dos povos antigos, subjacente no sertão e, por consequência, procura desenvolver uma narrativa dentro dos moldes (anteriormente sacralizados ficcionalmente) da “troca de experiências”. Em princípio o narrador sertanejo do século XX se propõe a contar a vida de Augusto Esteves, herdeiro de uma dinastia de valentes, fundamentada na força física, nas armas e na quantidade de alqueires de terra.
Weber, ao analisar o poder do Estado, diz:
“O Estado é uma relação de homens dominando homens, relação mantida por meio da violência legítima (isto é, considerada como legítima). Para que o estado exista, os dominados devem obedecer à autoridade alegada pelos detentores do poder” (Max Weber)
Esta assertiva de Weber se evidencia no início da narrativa de João Guimarães Rosa. É exatamente isto o que acontecia no século XX (ainda acontece) nos sertões brasileiros e mesmo nas grandes cidades. A realidade se apresenta em seus aspectos mais degradantes: homens (uma minoria) dominando homens (a maioria) por meio da violência, uns poucos homens escorados em instituições aparentemente criadas para servir, mas que se transformavam em forças geradoras de dominação.
Neste duplo aspecto se organizam as sequências ficcionais de A hora e vez de Augusto Matraga (narrativa apresentada aos leitores em meados do século XX): narrativa descompromissada e informativa de um mundo imaculado (à moda antiga) e, intrinsecamente, uma narrativa diferenciada em que estas “experiências de vida” do “ontem eterno” são negadas por um outro caótico mundo abalado por sucessivas e inesperadas violências.
Graças a esta dualidade as sequências diegéticas acopladas ao pensamento mimético/criador atingem um plano universal de raras proporções. A narrativa roseana capta a moderna incerteza social que envolve/ia (antigos) coronéis, jagunços, habitantes de uma pequena comunidade dos sertões brasileiros, e, de repente, percebe-se que aquele espaço singularmente ficcional representa o próprio meio social do século XX, com suas contendas entre irmãos, guerras entre países vizinhos, subordinação do mais fraco pelo poderoso.
Penso em Guimarães Rosa como refletor da burguesia periférica brasileira de meados do século XX. Seu narrador é um personagem burguês. O ponto de vista de Rosa, mediatizado pelo narrador, é um ponto de vista burguês (Atenção: o sentido da palavra "burguês", aqui realçado, não possui acepção pejorativa).
Percebo, nas primeiras sequências da narrativa, o narrador como porta-voz das experiências do dono do ato de narrar, mas, posteriormente, o narrador de A Hora e Vez de Augusto Matraga passa a representar uma determinada classe social. Mesmo que este demonstre uma criatividade ilimitada, e isto se observa quando se liberta do jugo memorialista deixando suas recordações do ambiente do sertão aflorarem espontaneamente, nem por isto deixa de apresentar sua visão social de um mundo que representa suas raízes de vida. Se ele possui sensibilidade para captar ficcionalmente o lado primitivo desse mundo, possui também suscetibilidade para observar que o mundo do século XX se encontra(va) ameaçado por forças desencontradas e poderosas.
Neste duplo aspecto, enquanto apreensão da matéria, estrutura-se a narrativa de Guimarães Rosa: se o político de meados do século XX (de qualquer camada social) luta(va) pelo poder, ou pelo prestígio advindo do poder, assim também o Senhor-de-terra do sertão também luta(va) para conservar o seu poder. É (ainda) uma luta feroz, porque é feita por meio da força física e dominação.
MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6
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