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quinta-feira, 30 de setembro de 2010

ODISSÉIA MARIA DO FINAL ENTRANÇADO DO SÉCULO XX - 1998 / 1999

ODISSÉIA MARIA DO FINAL ENTRANÇADO DO SÉCULO XX - 1998 / 1999

NEUZA MACHADO

VIGÉSIMO OITAVO CANTO - 1


mas, como eu ia contando,
1998 ― o Anno que já é Passado
neste Recontar Entrançado ―
foi um Anno de Sorte,
foi um Anno muito bom para mim,
nesse anno passado
iniciei esta minha Insólita Viagem,
por esses Ares Enfumaçados
Nunca Dantes Navegados
Por Nenhum Foguete Espacial Epo-Ficcional de Carreira,
tendo por Madrinha Vênus das Grandes Finanças Voláteis em Capricórnio,
minha Sortuda Casa do Dinheiro Ansiado Suado;
mas que é do Dinheiro Real que o meu Patrono Saturno Mágico Severo predisse no Orago Diário de hoje?,
mas quede o Dinheiro, my God?,
neste Início de Anno de 1999,
estou mais pobre do que o Apaziguado Jó,
aquele da Bíblia,
cadê?;
que é do Milionário Prometido Pelos Astros para depois dos cinquenta?,
cadê?;
cadê aquela Paixão Fulminante que o Grande Mago Adivinho das Revistas Esotéricas das Bancas de Jornal do Brasil Varonil me prometeu?,
cadê?,
naquele 12 de dezembro de 1998,
quando Mercúrio retomava a sua viagem direta em Sagitário,
e o Marte Rompante e a Lua Brilhante estavam unidinhos felizes namorando em Libra;
e Netuno e Urano, tão amigos!, em Aquário;
e Plutão Aventureiro em Sagitário, em paz com Mercúrio Veloz;
e Santa Luzia Brilhante dos Legais Cegos Borromeus de Minas Gerais,
minha Altaneira Padroeira Mineira!,
se preparando para comemorar,
na manhã do dia seguinte,
seu aniversário,
o aniversário dela, quero dizer;
se o 1998 foi bom,
1999 será melhor!,
assim eles estão a me dizer no momento;
em 1999 os Astros me beneficiarão;
1998 foi a preparação para as magníficas incríveis portentosas bellas maravilhosas assombrosas prodigiosas insólitas extraordinárias sensacionais e raras maravilhas pré-anunciadas somente para mim;
você entendeu, meu Leitor do Século XXI?,
egocêntrica egoísta e solitária, eu sou!;
e os outros Sagitarianos do Mundo Rotundo?,
não se beneficiarão com as Previsões Astrológicas?;

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

ODISSÉIA MARIA GUERREIRA BRASILEIRA DO FINAL DO SÉCULO XX – 1998 / 1999

ODISSÉIA MARIA GUERREIRA BRASILEIRA DO FINAL DO SÉCULO XX – 1998 / 1999

NEUZA MACHADO

VIGÉSIMO NONO CANTO - 3


... o que seria de mim sem os oráculos astrais?,
a me empurrar para frente com previsões tão certeiras!,
neste Final de Ano de 1998,
a dividir-me em Mil Mulheres
todos os dias e noites também;
pela manhã sou Circe e sou também Irinéia,
à tarde me transformo em Diana Guerreira,
vou pras mattas do Rio, para pescar e caçar,
vou driblando e flertando com os deuses da Floresta Equatorial-Tropical,
outras tardes me transformo em Maria Felix Bonita Mexicana de Lara,
passo os dias só ouvindo boleros de amor e paixão,
passo horas ao lado de meu Amor Agustin,
oiço a bella voz do divino Agustin até não poder mais,
isto quando não me vejo na pele das chicas cubanas,
das chiquitas bacanas do meu Amor Bigodudo,
o meu Bienvenido Grandalhão,
com sua voz sonorosa,
agita e agita o meu coração,
os boleros castelhanos invadem meu Casulo de Seda Brilhante,
a música vibrante sacode todo o prédio,
os vizinhos reclamam do barulho troante
e pedem aos gritos para eu abaixar o volume do som;
nesses dias de saudade,
o meu apartamento se enche de música chorosa,
de música chorosa à moda espanhola,
e os boleros dramáticos de cabaré mexicano,
ou de cabaré cubano de primeira categoria,
ou até mesmo de quinta,
invadem a paz de uma rua qualquer
localizada num Bairro Tradicional do Rio de Janeiro,
graças a Deus!, eu moro bem pra caramba!,
eu moro bem pra caramba num conjugadinho apertado,
e eu não troco meu Casulo de Seda Carioca por nada do Mundo,
não quero jamais uma casa luxuosa,
tenho pena da proprietária da casa luxuosa,
é escrava permanente da casa luxuosa,
mesmo se a rica possuir um batalhão de empregadas,
será sempre escrava da casa luxuosa;
mas, como eu ia dizendo,
de vez em quando, também,
sou Vájira Diamante Pedra Resistente;
por fim, de verdade, sou Católica Romana
e creio em Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo; com muito fervor!,
rezo sempre a Ave-Maria, o Credo e a Salve-Rainha,
e peço a Deus Pai muita proteção!,
peço sempre aos meus Santos da Igreja Católica
que roguem por mim a Deus Altíssimo Nosso Senhor;
quem me ensinou esse ecletismo religioso foi compadre meu Quelemém,
parente distante de Dante, Camões e João Guimarães,
para livrar-me dos males do Mundo, amém!;
mas vou sempre consultar o Oráculo Astrológico,
ler horóscopo faz parte da realidade actual,
os deuses pagãos permaneceram atuando
nos Mapas Astrológicos do Mundo Rotundo,
júpiter benevolente,
plutão misterioso,
vênus sedutora,
marte conquistador,
mercúrio veloz,
urano revolucionário,
e tem também netuno dos mares,
e saturno ameaçador com sua cara fechada,
e tem o sol casado com a lua,
um casal vivendo em total desencontro,
o sol brilhante trabalhando de dia
e a lua infiel farreando de noite,
e os astros todos olhando por mim,
e os deuses do olimpo de Copacabana
e os da floresta dos celtas
e os da floresta amazônica,
os deuses do Egito
e os do Oriente
et cœtera etc e tal;
mas, à noite, Viajo Contente,
vou Desbravando o Encantado País do Silêncio Indomável,
à noite, eu me transformo em Odisséia Maria Guerreira,
encanto os ouvintes com as Narrativas Mais Bellas,
me transformo também em Nise,
em Marília,
namorando os Poetas de Minas Gerais,
e são tantas as Mulheres que vivem em mim,
e são tantos os rostos nos quais me disfarço,
as máscaras cotidianas que ostento e abrigo,
e não sei mais quomodo reordenar-me,
reunir os pedaços de mim
que estão soltos no Espaço Sem-Fim,
alguns ficaram perdidos no passado;
e eu, agora, neste Final de Século XX,
Odisséia Maria dos Grandiosos Múltiplos Sonhos Brilhantes Dourados,
vou viajando e cantando,
às vezes rindo ou chorando,
caminhando,
caminhando,
caminhando,
caminhando,
caminhando,
caminhando em direção ao infinito...
ao infinito...
ao infinito de mim ...

terça-feira, 28 de setembro de 2010

ODISSÉIA MARIA GUERREIRA BRASILEIRA DO FINAL DO SÉCULO XX – 1998 / 1999

ODISSÉIA MARIA GUERREIRA BRASILEIRA DO FINAL DO SÉCULO XX – 1998 / 1999

NEUZA MACHADO

VIGÉSIMO NONO CANTO - 2


... mesmo adotando
e amando o Rio de Janeiro,
continuo mineira,
com muito prazer!,
relembro com amor o meu Estado de origem,
recordo com carinho
as bellas tardes fagueiras
da minha infância distante,
ai!, que saudades que tenho
da minha infância querida,
debaixo das laranjeiras
e mangueiras
e goiabeiras
e jabuticabeiras,
os deliciosos fruitos existentes
em Minas Gerais,
do meu saudoso quintal
e dos quintais dos vizinhos,
ai!, que saudades que tenho,
meu Amor!, meu Rapaz!;
no entanto, morar em Minas Gerais
nunca mais, nunca mais!,
Minas é um Reduto Ainda Muito Fechado
neste Final do Século XX, demais!;
Minas continua adotando
os Patriarcais Costumes Antigos Legais,
o mineiro altaneiro,
aquele que saiu de Minas Gerais
e conheceu a Liberdade de Viver e Amar,
jamais voltará para Minas Gerais,
se for Mulher, então, não voltará, com certeza!,
a Mulher em Minas não tem liberdade,
se lutar para ter liberdade, será mal-falada,
falarão da Mulher com desprezo e rancor,
a Mulher desobrigada é por lá criticada,
a Mulher deforçada, de Minas Gerais,
compreenderá o aqui manuscrito
e depois digitado,
os Costumes de Minas
são Patriarcais por demais,
a Mulher Mineira,
deste Vinte Final,
tem de ser recatada,
terá de ser retraída, acanhada,
não pode jamais conversar com o vizinho,
com o marido da vizinha, quero dizer,
senão, a vizinha baixará o porrete,
vai bater pra valer na vizinha irrequieta,
a Talzinha ousou conversar com seu marido-galinha,
e a Mulher liberada
não estava fazendo nada de mais, óh coitada!,
nem estava interessada no marido da comadre,
mesmo assim, ela será afastada da sociedade,
será marginalizada e malsinada,
porque simplesmente quis ter liberdade,
a liberdade de agir
sem prestar contas ao Mundo Rotundo;
falo com Você, Leitor de Formação Patriarcal
deste Século XX Final,
ou com o Leitor do Século XXI
do Futuro Sensacional,
Você que está lendo este Texto Enrolado,
mesmo se Você agora afirmar
e reafirmar o contrário;
nas Minas Gerais, meu Rapaz!,
neste Final de Século XX
e de Segundo Milênio,
eu afirmo e rejuro,
não há liberdade para a Mulher Mineira,
não Senhor, meu Amor;

mas, atenção!, por favor!,
há uma Facção de Mulher Mineira
deste Final do Vinte Patriarcal
arisca e manhosa,
ela sabe fingir com maestria,
sabe enganar as velhas fofoqueiras mineiras,
se não há liberdade, ela inventa a vida,
santamente ela põe chifres no seu marido-galinha,
e ai de quem lhe apontar o dedo, acusando-a,
ela é pura e é santa,
mas faz das suas às escondidas,
trama com os compadres no meio da roça
e et cœtera e tal;
de vez em quando,
vão nascendo uns filhos mui diferentes;
mas seu caçula, comadre Alqueminda,
é muito parecido com o compadre Jovinho,
você não acha, comadre, que há parecença?;
o que é isso, comadre Moirena?,
sou esposa fiel!,
meus filhos são todos do meu marido Anfitrião Bonitão,
compadre Jovinho é só o padrinho
de meu caçula Izé, com muito zelo e carinho,
o que é isso, comadre?, sou esposa fiel,
meus filhos são todos do mesmo pai,
não sou a sua filha Matirda Perdida,
o que é isso, comadre?, está me estranhando?,
meu caçula é filho do meu marido
Bastião Anfitrião Valentão;

mas, como eu ia dizendo,
a Mulher mineira é muito fiel,
até mesmo a Mulher da tal Facção,
quando o compadre se assanha
um pouquinho mais, ela diz,
compadre, o meu marido evém-já,
o meu marido evém-já, compadre Jovinho,
cuidado, compadre, o meu marido evém-já,
meu compadre Zeuzão!;
e vai se inclinando pro compadre Zeuzinho,
no fim de nove meses nasce mais um Izézinho,
e ai de você se notar parecença!;
o que é isso, comadre?, lhe bato na cara,
meu Izézinho é filho legítimo
do meu marido Tirésio Bastião Enfatrião Bonitão,
ele sua na roça de sol a sol,
trabalha e trabalha de sol a sol,
o Izézinho Fatriãozinho, quando crescer,
vai ajudar o pai na lavoura,
labutar na roça e empunhar a enxada afiada,
ainda bem, comadre, tenho doze filhos fortudos,
todos homens taludos pra ajudar o pai,
é bem verdade!, o Nico é bem queimadinho,
quase pretinho,
e seu pai Tirésio Fatrião
é branco alourado de pêlo dourado,
o Tirésio, comadre, teve uma avó bem pretinha,
o Sinhô Português pegava a escrava de jeito;
de vez em quando,
nascia na sanzala um quase branquinho,
o Tirésio é louro, mas sua avó era escrava,
por isso o Tonico é meio queimado,
digo, um escurinho bem bonitinho,
o Joca, comadre, tem os olhos rasgados
quomodo um japonês ou chinês,
eu olhei muito, na época da gravidez,
pru filho japonês do compadre Hakirô,
por isso, comadre, o Joca tem cara de japonês,
o que é isto, comadre?, não seja encrenqueira,
não fale essas coisas,
elas vão me perder,
ainda bem e amém, tenho doze filhos fortudos
pra ajudar o pai na lavoura,
não fale essas coisas infames,
minha comadre Assuntinha,
o Tirésio é cego, mas é brabo também
e vai me matar,
se esta história esticar até aos ouvidos dele,
cale a boca, comadre, sou mulher fiel;

mas, como eu ia dizendo, a comadre boboca,
que também faz das suas,
volta pra casa amuada, coitada!,
não descobriu o segredo bem guardado
da comadre Minervinha Alequiméia Odisséia,
mãe de doze filhos hercúleos,
cada um de um pai;
e o reduto mineiro cada vez mais fechado,
continua lacrado!,
se eu estivesse ainda em Minas Gerais, meu Rapaz!,
não sei não!,
talvez, não teria hoje Liberdade no Mundo,
teria caído na boca do povo, uai!,
não aceito que me cortem a palavra!,
quero sempre o meu cavalo solto no pasto,
a liberdade é um bem valioso,
não tem preço nem mesmo endereço,
a liberdade é um bem conquistado com fervor,
teria caído na boca do povo, Senhor,
se tivesse ficado em Minas Gerais;
talvez amigada com um fazendeiro rico,
entre tapas e beijos na hora do amor,
e o amante gritando e exigindo obediência,
e eu me rebelando, rebelando, rebelando
e batendo também,
com certeza seria valente,
Mulher Brava e Rompante,
jamais me submetendo ao terror,
e ai do amante mandão com seus freios de amor;
ainda bem!,
as Parcas Bondosas do Século XX
teceram meu loooooongo destino!;
na hora do meu nascimento,
os deuses de Hammurabi Rei Babilônico
e o divino Itabirano Drummond
pronunciaram meu nome,
vá Circe Irinéia Odisséia Maria
do Novello Amassado ser torta na vida,
e eu rodei para o Rio de Janeiro,
na década de sessenta,
num avião transportador de cargas mineiras,
e o Rio de Janeiro me acolheu com amor,
viva o meu Rio de Janeiro!, Doutor!,
o meu Rio querido e acolhedor,
aqui vivo bem e sou dona de mim,
faço o que quero e sou livre
e viajo sempre que posso,
e leio os meus clássicos
e os horóscopos também,

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

ODISSÉIA MARIA GUERREIRA BRASILEIRA DO FINAL DO SÉCULO XX – 1998 / 1999

ODISSÉIA MARIA GUERREIRA BRASILEIRA DO FINAL DO SÉCULO XX – 1998 / 1999

NEUZA MACHADO

VIGÉSIMO NONO CANTO - PRIMEIRA PARTE


... mas, como eu ia contando,
em São Paulo,
nessa Mistura Sem-Igual,
Sensacional,
todos são Brasileiros,
muito prazer Magnata!,
torcem com garra pro time do Coríntiãs,

ou, então,
são todos Sampaulinos doentes,
portugueses,
brasilanos,
japoneses,
coreanos,
chineses,
italianos,
noruegueses,
venezuelanos,
franceses,
angolanos
e et cœtera, etc, etc e tal,
são todos brasileiros nessa mistura saudável
com muito prazer!;

até mesmo Minas Gerais,
tão portuguesa!,
recebe e acolhe todas as etnias do Mundo Rotundo;
desde o Século XVIII,
ou bem antes,
semideuses espanhóis
e franceses
e alemães
e ingleses
e suíços
e libaneses
se alojaram em Minas Gerais
e disfarçaram seus semens e nomes legais,
os estrangeiros foram para Minas Gerais,
no passado,
se tornaram senhores mineiros mui altaneiros
e esqueceram as origens reais,
só Minas conseguiu tamanha façanha,
os descendentes dos valerosos antigos franceses e ingleses,
hoje, são todos cidadãos senhores mineiros,
e os italianos também!,
e os libaneses também!,
não há reduto declarado de estrangeiros em Minas Gerais, meu Rapaz!,
talvez, quem sabe?,
um jovem reduto de senhores japoneses
plantando tomates em Minas Gerais,
conservando ainda os costumes da origem,
porém, com certeza,
seus descendentes se tornarão senhores mineiros,
falarão com sotaque mineiro,
cantarão músicas roceiras
quomodo qualquer caipira mineiro,
esquecerão os costumes dos japoneses mais velhos,
aceitarão os costumes mineiros
e et cœtera, e etc e tal,
a despeito dos olhinhos reveladores da origem asiática;
só Minas conseguiu e consegue
e conseguirá tamanha façanha,
não há reduto de estrangeiro declarado em Minas Gerais,
Minas sempre foi um Estado Federativo fechado demais
do meu Brasil Adorado,
quem quiser morar lá, terá de se tornar mineiro,
não é semelhante a São Paulo
e os Estados do Sul do Brasil,
por certo, Possessões Estrangeiras;
em Minas, alemão se transforma em senhor mineiro
e esquece depressa sua língua de origem;
os turcos e libaneses são todos senhores mineiros,
não tenho certeza, mas o meu sangue é moureno também;
apenas os sobrenomes denunciam a descendência estrangeira,
Minas é um Estado meio medieval,
quem quiser morar lá, terá de adotar seus costumes,
qualquer cidadão de outros Estados do Brasil Varonil também,
também se transforma em mineiro roceiro nas Minas Gerais,
os costumes da terra se apoderam depressa
daquele que se atreve a morar lá,
Minas é um reduto muito fechado, sim Senhor,
saiba Você, eu nasci em Minas Gerais
e sei muito bem o que digo e afirmo,
pois o mineiro, mesmo saindo de Minas Gerais,
continua mineiro em qualquer parte do Mundo,
seja um Mundo Rotundo ou Profundo;

domingo, 26 de setembro de 2010

ODISSÉIA MARIA - INTERREGNO

ODISSÉIA MARIA - INTERREGNO

NEUZA MACHADO

TRIGÉSIMO CANTO


INTERREGNO

mas, como eu ia contando
mas, como eu ia contando
mas, como eu ia contando
mas, como eu ia contando
mas, como eu ia contando
mas, como eu ia contando
mas, como eu ia contando, no Século XXI, com Sensacionais Oitocentos Passos Mortais, a Odisséia Maria Matriarca Brasileira tomará a Poderosa Armadura de seu tetravô greco-romano-português-espanhol da puerta del sol-africano-brasilano-mineiro matreiro-divinense-carangolano das Montanhas do Oiro das Minas Gerais e continuará a narrar, acredite!, as Incríveis Aventuras Epo-Ficcionais Transcendentais Sem-Iguais que fizeram a Grandeza dos Patriarcas do Segundo Milênio Guerreiro Horroroso Tenebroso Desditoso Belicoso de Peixes, mas, como eu ia contando...
mas, como eu ia contando... ...
mas, como eu ia contando
mas, como eu ia contando
mas, como eu ia contando
mas, como eu ia contando
mas, como eu ia contando
mas, como eu ia contando
mas, como eu ia contando
mas, como eu ia contando


(Escrito por Neuza Machado entre o período de Dezembro de 1998 a Janeiro de 1999 / Finalização da narrativa)

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

A TRANSFORMAÇÃO DISCURSIVA DO NARRADOR

A TRANSFORMAÇÃO DISCURSIVA DO NARRADOR

NEUZA MACHADO

Urge quebrar esta monotonia, esta repetição de modelos ficcionais. Faz-se necessário “tomar a vez” do “herói” patriarcal, sair das comunidades políticas fechadas do “ontem eterno”, abandonar a narrativa sintagmática e assumir a narração de uma estória vertical, na qual a desintegração discursiva reflita o mundo caótico de meados do século XX que circunda o espaço fechado do sertão brasileiro e que não se encontra significado pelo narrador. Já não há lugar para a linear unidade narrativa. Quem narra (mesmo tendo suas origens plantadas no sertão de Minas Gerais) já não se identifica com a matéria narrada. Encontra-se agora fragmentado e envolto por inúmeras recordações que se embaralham no mais fundo do eu.

Aproxima-se o momento da verdadeira “queda” do “herói” à moda medieval — a morte ideológica — e o nascimento do personagem ficcional (ainda como um representante do “ontem eterno” de meados do século XX, que minha afirmação fique bem clara). Aproxima-se o momento da permutação de papéis. Agora, o herói é o próprio narrador, semideus com poderes de vida e de morte. O poder de Nhô Augusto é transferido para o narrador moderno de meados do século XX, e o poder do Artista Ficcional também. Agora, o narrador é o autêntico representante do (ainda) mundo burguês, retendo em suas mãos a condução da narrativa. Todo poder é poder de vida e de morte. “A Hora e Vez” de Nhô Augusto Matraga, (um representante do “ontem eterno”) depende do narrador roseano, porque este reflete o poder do Artista ficcional de meados do século XX. O narrador de Guimarães Rosa submete o personagem a seus desígnios. Diz Foucault: Como quando um general manda seus soldados para a guerra. O narrador, a partir de agora, será o único dono de um discurso narrativo que reflete as condições de seu momento histórico. Doravante, apenas o personagem Nhô Augusto (ainda um representante do “ontem eterno”) continuará aparentemente o mesmo (até o momento do fatal desenlace).

Esta transformação discursiva impõe-me raciocinar sobre a morte simbólica do narrador memorialista e o nascimento do narrador em fase de transição para o pós-moderno. Este “sepulta” a lembrança (matéria memorialista) e faz surgir a recordação (matéria lírica) de um mundo que foi seu leitmotiv de vida — leitmotiv de vida do Artista Ficcional de meados do século XX —, mas que, agora, encontra-se desintegrado (o mundo sertanejo), embaralhado em suas recordações. Simbolicamente, repito, morre o narrador memorialista e nasce o narrador-personagem, narrador de meados do século XX, o que sabe dos mais íntimos pensamentos daquele que narra.


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

A INEVITÁVEL DINÂMICA DO PODER

A INEVITÁVEL DINÂMICA DO PODER

NEUZA MACHADO


O narrador de Guimarães Rosa (A Hora e Vez de Augusto Matraga) transmite as notícias do sertão arcaico — sertão como distância e fundamento —, e mostra que o poder meio primitivo dos donos-de-terra nos sertões brasileiros foi uma constante e, talvez, ainda o seja em virtude de o sertanejo ser muito apegado às tradições e aos valores antigos. Graças a esse apego, a arte de narrar ainda sobrevive em Minas Gerais, e as figuras que se sobrepuseram ali em força e poder político alcançam ― ficcionalmente ― níveis lendários, equiparando-se aos notáveis heróis registrados nas Literaturas de todos os tempos.

As “experiências de vida”, ditas por Walter Benjamin, são relatadas em sucessivas gerações. É inerente ao sertanejo brasileiro o hábito de contar estórias, passar para os mais jovens as “experiências” dos corajosos, promover normas de vida, ensinar, aconselhar e incentivar à geração futura o desenvolvimento de atos heróicos. Por esta ótica o povo sertanejo de Minas Gerais mantém um vínculo permanente com os povos primitivos.

O narrador roseano de meados do século XX, em princípio, capta essa matéria remanescente dos povos antigos e medievais subjacente no sertão de Minas Gerais e, por consequência, procura desenvolver uma narrativa dentro dos moldes anteriormente sacralizados ficcionalmente da “troca de experiências”. Em princípio, o narrador sertanejo do século XX se propõe a contar a vida de Augusto Esteves, herdeiro de uma dinastia de valentes, fundamentada na força física, nas armas e na quantidade de alqueires de terra.

Weber, ao analisar o poder do Estado, diz:

“O Estado é uma relação de homens dominando homens, relação mantida por meio da violência legítima (isto é, considerada como legítima). Para que o estado exista, os dominados devem obedecer à autoridade alegada pelos detentores do poder” (Max Weber)

Esta assertiva de Max Weber se evidencia no início da narrativa de João Guimarães Rosa. É exatamente isto o que acontecia no século XX (ainda acontece neste início de século XXI) nos sertões brasileiros e mesmo nas grandes cidades. A realidade se apresenta em seus aspectos mais degradantes: homens (uma minoria) querendo dominar homens (a maioria) por meio da violência, uns poucos homens escorados em instituições aparentemente criadas para servir, mas que se transformavam em forças geradoras de dominação.

Neste duplo aspecto se organizam as sequências ficcionais de A hora e vez de Augusto Matraga (narrativa apresentada aos leitores em meados do século XX): narrativa descompromissada e informativa de um mundo imaculado (à moda antiga) e, intrinsecamente, uma narrativa diferenciada em que estas “experiências de vida” do “ontem eterno” são negadas por um outro caótico mundo abalado por sucessivas e inesperadas violências (a realidade burguesa da Era Moderna).

Graças a esta dualidade, as sequências diegéticas acopladas ao pensamento mimético/criador atingem um plano universal de raras proporções. A narrativa capta a moderna incerteza social que envolvia/envolve (antigos) coronéis, jagunços, habitantes de uma pequena comunidade dos sertões brasileiros, e, de repente, percebe-se que aquele espaço singularmente ficcional representa o próprio meio social do século XX, com suas contendas entre irmãos, guerras entre países vizinhos, subordinação do mais fraco pelo poderoso.

Penso em Guimarães Rosa como refletor da burguesia periférica brasileira de meados do século XX. Seu narrador é um personagem burguês. O ponto de vista de Rosa, mediatizado pelo narrador, é um ponto de vista burguês (Atenção: o sentido da palavra burguês, aqui realçado, não possui acepção pejorativa).

Percebo, nas primeiras sequências da narrativa, o narrador como porta-voz das experiências do dono do ato de narrar, mas, posteriormente, o narrador de A Hora e Vez de Augusto Matraga passa a representar uma nova classe social emergente. Mesmo que este demonstre uma criatividade ilimitada, e isto se observa quando se liberta do jugo memorialista deixando suas recordações do ambiente do sertão aflorarem espontaneamente, nem por isto deixa de apresentar sua visão social de um mundo que representa suas raízes de vida. Se ele possui sensibilidade para captar o lado primitivo desse mundo, possui também suscetibilidade para observar que esse mundo sertanejo do século XX se encontra ameaçado por forças desencontradas e poderosas.

Neste duplo aspecto, enquanto apreensão da matéria, estrutura-se a narrativa de Guimarães Rosa: se o político de meados do século XX (de qualquer camada social) lutava pelo poder ou pelo prestígio advindo do poder, assim também o Senhor de terra do sertão também lutava (e luta ainda, neste início de século XXI) para conservar o seu poder. É uma luta feroz, porque é feita por meio da força física e dominação de pequenos grupos de “herdeiros do ontem eterno”.


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

O PODER DE MANDO DO ONTEM ETERNO (SÉCULO XX) EM CONFRONTO COM O ATUAL PODER POPULAR (INÍCIO DO SÉCULO XXI)

O PODER DE MANDO DO "ONTEM ETERNO" (SÉCULO XX) EM CONFRONTO COM O ATUAL PODER POPULAR (INÍCIO DO SÉCULO XXI)

NEUZA MACHADO

O personagem “herdeiro do ontem eterno” de Guimarães Rosa (em A Hora e Vez de Augusto Matraga), depois da “surra” sofrida, depois da perda do "antigo poder de mando", começa a pensar em uma nova forma de reestruturar-se. A seguir, faz-se necessário defender-se contra o espaço (o mundo com suas fortes ideologias) e os acontecimentos (imprevisíveis), mas o espaço social do século XX, nesta etapa da narrativa, escamoteia tal pretensão, impondo-lhe a substância religiosa que sobrevive sob diversos matizes no sertão.

Cavada pelo pensamento veio à tona a perdida religiosidade que se escondia no passado, plantada na infância pela avó que o criara, agora estimulada pela preta velha Quitéria que lhe salvara a vida. Dogmas religiosos, atitudes de vida, apelos morais, imposições normativas: cercas conceituais limitadoras e frustrantes.

O narrador memorialista recomeça (por enquanto) ainda por via sintagmática.

Repensemos o narrado: No princípio da narrativa (primeira sequência), a representação do poder hierárquico em decadência (o poder do “herói” em decadência). O personagem ― Augusto Matraga ― prestes a perder a “aura” guerreira. A autoridade do “ontem eterno”, na primeira seqüência sintagmática, já em vias de extinção em um mundo sertanejo que procurou se conservar comunitário. Com mais justiça, já houve essa ruptura. O espaço comunitário do sertão mineiro (herdeiro de normas medievais aqui “plantadas” no século XVI) resistiu às investidas do progresso moderno (Era Moderna) durante vários séculos, mas no século XX se encontrava nos últimos estágios de decomposição. Fazia-se urgente reerguer-se.

A “queda” sócio-vivencial do personagem Nhô Augusto, no momento da proposta de concepção ficcional (meados do século XX), permitiu ao escritor Guimarães Rosa simbolizar os momentos críticos da vida do brasileiro (sertanejo ou não). Homem de muitos talentos, Guimarães Rosa soube recriar esses momentos em seus incomuns textos ficcionais.

O segundo segmento da narrativa (depois da “queda ribanceira abaixo”), já nos apresentando um Nhô Augusto carismático, propicia-nos repensar a questão das grandes “quedas” sócio-políticas acontecidas no Brasil do século XX: É lícito observar que, depois das grandes desgraças sociais, surgem os líderes carismáticos procurando reordenar a desordem (no caso dos líderes carismáticos políticos de meados do século XX, todos tinham suas origens bem plantadas no poderoso “ontem eterno”; ainda estavam presos aos seus sociais nomes ilustres; ainda se portavam como “pais” dos pobres; ainda não eram autênticos líderes representantes da classe dos oprimidos; ainda não eram líderes “irmãos” dos pobres).

Nhô Augusto, enquanto um elevado personagem representante do “ontem eterno” sertanejo, pensa em uma nova forma de preservar o poder pessoal momentaneamente extraviado. Não o antigo (o social), mas um poder que o eleve acima do comum dos mortais, pois o narrador do século XX (um narrador interativo) agora e temporariamente se submete à religiosidade e ao comando da narrativa de espaço (ou seja, aos dogmas ideológico-religiosos do momento histórico do personagem sertanejo)

Um dia o personagem Nhô Augusto (submetido às rápidas transformações ideológicas do século XX) resolveu confessar-se (repensar o poder político da Igreja Católica do século XX). O padre veio, trazido pelos pretos, às escondidas. O novo homem que emergia da carcaça amassada do antigo e sanguinário Senhor-de-terra poderoso necessitava da absolvição de seus pecados, do perdão daquele Deus do qual estivera tão distanciado. O padre o absolveu e garantiu-lhe que Deus não desampara os que se arrependem. Por intermédio do padre, a voz do pensamento religioso impôs seus sacralizados preceitos.

“Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina de sol quente, que às vezes custa muito a passar, mas sempre passa. E você ainda pode ter muito pedaço bom de alegria... cada um tem a sua hora e vez: você há de ter a sua” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).

Ora, o carisma significa o “dom da graça”. Somente os privilegiados, os líderes poderosamente dotados de milagres e revelações, feitos heróicos e êxitos no que se propõem a fazer, o possuem. Assim, o personagem sertanejo, de ficção do século XX, que acabara de sofrer uma “morte” sócio-substancial, percebe por intermédio das palavras do padre a sua chance de reestruturar-se (de readquirir uma outra qualidade de poder).

Para este recomeço se necessita de um “novo” revestimento para o denominado personagem ficcional de meados do século XX, e de um “novo” (diferente) cenário (político-religioso). Por tal motivo, o narrador transporta o cenário para um sítio que Nhô Augusto possuía e nem sequer conhecia, perdido no sertão (sítio = dimensão do poder religioso). Nhô Augusto levou consigo os pretos samaritanos que a ele se apegaram e não o quiseram largar.

“Ao sair, Nhô Augusto se ajoelhou, no meio da estrada, abriu os braços em cruz, e jurou: — Eu vou para o Céu, e vou mesmo, por bem ou por mal!... E a minha vez há de chegar... Pra o Céu eu vou, nem que seja a porrete!...” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).

Seria o aparecimento do líder carismático oriundo do “ontem eterno”? À imitação de Jesus Cristo, Nhô Augusto sai em peregrinação levando consigo os primeiros apóstolos. Seria Nhô Augusto, um reconhecido personagem “herdeiro do ontem eterno”, personagem ficcional de meados do século XX, realmente o autêntico líder carismático de que nos fala Weber?

Procuremos entender, segundo Weber, o que é carisma:

“1o) Os líderes naturais nas dificuldades foram os portadores de dons específicos do corpo e do espírito, dons esses considerados como sobrenaturais, não acessíveis a todos.

2o) O carisma só conhece a determinação interna e a contenção interna. O seu portador toma a tarefa que lhe é adequada e exige obediência a um séquito em virtude de sua missão.

3o) O carisma vive neste mundo, embora não seja deste mundo.

4o) O carisma, e isto é decisivo, sempre rejeita como indigno qualquer lucro pecuniário que seja metódico e racional. Em geral, o carisma rejeita todo comportamento econômico racional.

5o) Para fazer justiça à sua missão, os portadores do carisma, o mestre bem como seus discípulos e seguidores, devem manter-se distantes das ocupações rotineiras, bem como distantes das obrigações rotineiras de família” (Weber).

Nhô Augusto, se não possuía todos estes pré-requisitos carismáticos, estava no caminho de os adquirir.

“E assim se deu que, lá no povoado do Tombador (...) apareceu, um dia, um homem esquisito, que ninguém podia entender.

Mas todos gostaram dele, porque era meio doido e meio santo; e compreender deixaram para depois”. (A Hora e Vez de Augusto Matraga)

Este trecho remete à primeira afirmativa de Weber, pois se Nhô Augusto era “meio doido e meio santo”, possuía “dons específicos do corpo e do espírito”, dons que, na maioria das vezes, são considerados sobrenaturais.

Na segunda afirmativa, o autor diz que o carisma só conhece a determinação e a contenção interna.

Quando o Tião da Thereza, personagem providencial, passou lá pelo Tombador à procura de trezentas reses e o encontrou, logo foi dando as notícias que ninguém tinha pedido. Nhô Augusto sentiu a ferida se reabrindo, mas se conteve, e pediu ao Tião que esquecesse o encontro e continuasse vendo-o como um homem que já morrera: “Não é mentira muita, porque é a mesma coisa em como se eu tivesse morrido mesmo... Não tem mais nenhum Augusto Esteves das Pindaíbas, Tião...” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).

Verdade. Este carismático não é Nhô Augusto das Pindaíbas e do Saco-da-Embira. Este poder carismático representa uma outra face do Brasil incrustado no sertão, representa uma camada do povo sertanejo repleno de experiências e normas religiosas. Representa as oscilações ideológicas do próprio narrador roseano. Representa o oposto do homem-mau ― Augusto Esteves ―, ou seja, o homem-bom, o carismático.

Se há desprezo no olhar do Tião ― personagem da anterior sequência ―, há, por outro lado, a determinação na atitude de Nhô Augusto. “Sim, era melhor rezar mais, trabalhar mais e escorar firme, para alcançar o reino-do-céu” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).

“O carisma só conhece a determinação interna e a contenção interna” (segunda afirmativa). O “carisma vive neste mundo, embora não seja deste mundo” (terceira afirmativa).

Na quarta assertiva, Weber informa que o carisma rejeita lucros pecuniários. Não restam dúvidas: Nhô Augusto já desenvolvera seu lado carismático.

“Trabalhava que nem um afadigado por dinheiro, mas, no feito, não tinha nenhuma ganância e nem se importava com acrescentes; o que vivia era querendo ajudar os outros. Capinava para si e para os vizinhos do seu fogo, no querer de repartir, dando de amor o que possuísse” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).

Quanto à última afirmação, que os carismáticos devem manter-se distantes dos laços deste mundo:

“Quem quisesse, porém, durante esse tempo, ter dó de Nhô Augusto, faria grossa bobagem, porque ele não tinha tentações, nada desejava, cansava o corpo no pesado e dava rezas a sua alma”.

“Também não fumava mais, não bebia, não olhava para o bom parecer das mulheres, não falava junto em discussão” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).

Os dogmas religiosos impuseram, até aqui, atitudes de vida. Encontra-se o narrador preso à exterioridade da narrativa, ao desejo de retratar os fatos retirados da matéria histórica.

Em breve, o contador de estórias despertará e caminhará sob o domínio do narrador moderno (aquele que faz parte do mundo desordenado do final da Era Moderna já se distanciando historicamente dos valores da medieva ordem do sertão mineiro). Em breve, o Artista ficcional dará uma nova vida aos personagens. Em breve, Nhô Augusto se transformará em personagem ficcional (¹ personagem exemplar) e o narrador passará a centralizar a narrativa.

Repensando a pergunta, depois das informações de Weber: Seria Nhô Augusto, um reconhecido personagem “herdeiro do ontem eterno”, personagem ficcional de meados do século XX, realmente o autêntico líder carismático de que nos fala Weber?

Resposta: Sim. Nhô Augusto representa o carismático oriundo do poder do “ontem eterno” de que nos fala Weber (por isto, ele não se realiza como carismático, sendo eliminado ao final da narrativa).

Historicamente, a seguir, o Carismático do Século XXI, como verdadeiro representante de oitenta por cento do povo brasileiro subjugados ao poder do “ontem eterno” (oriundo também ele desse mesmo povão), faria a sua entrada triunfal no amplo cenário político do Brasil. Max Weber não conheceu este Carismático do século XXI, portanto não pode desenvolver uma teoria sobre esta outra face do carisma (não mais guerreiro, não mais religioso).

Penso em um nome para o carisma deste diferenciado Líder Popular Brasileiro desses anos iniciais do Terceiro Milênio (um vitorioso sem diploma universitário, detestado pela pequena elite do “ontem eterno” e pelos representantes legais do catolicismo): poderia esta teórica literária tupiniquim, evidentemente com o aceite de seus pares, designá-lo como “Carismático Pós-Moderno”?


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

domingo, 19 de setembro de 2010

A DESTRONIZAÇÃO DO ONTEM ETERNO

A DESTRONIZAÇÃO DO "ONTEM ETERNO"

NEUZA MACHADO

“Quando chega o dia da casa cair — que, com ou sem terremoto, é um dia de chegada infalível — o dono pode estar: de dentro, ou de fora. É melhor de fora! E é a só coisa que um qualquer-um está no poder de fazer. Mesmo estando de dentro, mais vale todo vestido e perto da rua. Mas, Nhô Augusto, não: estava deitado na cama — o pior lugar que há, para se receber uma surpresa má” (Guimarães Rosa, A Hora e Vez de Augusto Matraga)

Reavaliando o que foi afirmado anteriormente (sobre a narrativa ficcional A Hora e Vez de Augusto Matraga, de autoria do escritor mineiro Guimarães Rosa):

Teríamos, neste trecho, a imagem de um momento de transição do Brasil? No espaço sócio-substancial do sertão de Minas Gerais várias etapas do Brasil Agrário se sobrepõem alheias à ação do tempo. Este trecho, significante de mudança narrativa, representa os “valores de uso” (a submissão primitiva do povo a um Senhor-de-terra) estando em vias de sofrer uma profunda transformação; ao mesmo tempo, representa os “valores de troca” mediatizados pelo dinheiro, valores estes que comandam o mundo burguês.

É interessante observar os motivos da debandada dos “bate-paus”. Se enquanto possuiu recursos e meios para ser um homem poderoso Nhô Augusto mandava e desmandava em seus subordinados (a arraia-miúda do Brasil do século XX), agora que se encontrava pobre não necessitava mais ser obedecido. Um outro poder — contra-poder — estava a caminho e os “bate-paus” aceitaram mudar de comando.

Aqui entra um problema sério: o das classes sociais.

Na definição de Weber, hoje considerada reacionária (mas que diz a verdade sobre o ficcional), as classes sociais

“(...) não são comunidades; representam simplesmente bases possíveis, e freqüentes, de ação comunal. Podemos falar de uma classe quando: 1) certo número de pessoas tem em comum um componente causal específico em suas oportunidades de vida, e na medida em que 2) esse componente é representado exclusivamente pelos interesses econômicos da posse de bens e oportunidades de renda, e 3) é representado sob as condições de mercado de produto ou mercado de trabalho” (Max Weber).

Quando Nhô Augusto mandou o Quim Recadeiro chamar os “bate-paus” (seus subordinados), ainda não sabia que o major Consilva os “comprara” com uma melhor oferta de pagamento. Esquecera-se que andava mal de vida e que há muito tempo já não pagava o ordenado de seus homens de confiança. A obediência perde o sentido quando o homem perde o poder.

Vejamos o trecho:

“Dali a pouco, porém, tornava o Quim, com nova desolação: os bate-paus não vinham... Não queriam ficar mais com Nhô Augusto... O major Consilva tinha ajustado, um e mais um, os quatro, para seus capangas, pagando bem. Não vinham mesmo. O mais merecido, o cabeça, até mandara dizer, faltando ao respeito:

— Fala com Nhô Augusto que sol de cima é dinheiro!... pra ele pagar o que está nos devendo... E é mandar por portador calado, que nós não podemos escutar prosa de outro, que seu major disse que não quer” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).

Eis aqui a inevitável “dinâmica do poder” com suas competições e pretensões assinaladas por Max Weber e já mencionadas anteriormente.

Para o narrador roseano de meados do século XX o major Consilva (uma outra face permanente do poder patriarcal) representa a certeza de que o sertão, enquanto espaço exterior aos conflitos do mundo, com suas superposições sociais e temporais ímpares, permanecerá intocável resistindo às investidas degradantes da sociedade moderna. Enquanto esse espaço exterior for captado por um olhar solitário e reconhecido como espaço sócio-substancial onde se ancora a tradição de um povo, este mesmo narrador sertanejo do século XX terá a certeza de que seu mundo de origem não se extinguiu. Apenas, em termos de narrativa, esse espaço ficará para trás, encubado como certas plantas que “dormem” sob a terra, retornando à vida de tempos em tempos.

As etapas de vida do personagem, as etapas de discurso-vida do narrador, as etapas do mundo burguês sertanejo em aceleradas transformações necessitam ser significadas. Todos os envolvidos na narrativa (inclusive o major Consilva e o próprio narrador), não apenas Nhô Augusto, sentem o momento da perda de poder, percebem o momento da perda de valores arraigados, pressentem as mudanças existenciais.

O significante nuclear desse momento no âmbito da ficção é a “surra” aplicada no personagem. Nhô Augusto apanhou e todos apanharam: o narrador, a sociedade burguesa sertaneja, o leitor, que também compactuou e se apoderou da matéria do narrador e do infortúnio do personagem como se fosse sua desgraça que estivesse sendo narrada. Assim, um personagem representante da burguesia; um narrador burguês do século XX; um leitor burguês do século XX; todos sentindo a vingança do mais fraco (dos bate-paus que bateram para valer), naquele momento de meados do século XX uma vingança temporária mediatizada por outro poder (o poder do Major Consilva, um poder secular ainda patriarcal), para desforrarar-se de quem o ofendeu.

Nhô Augusto apanhou de seus próprios “bate-paus” de confiança, assessorados pelo capiauzinho apaixonado de Sariema (o capiauzinho empregado do major Consilva). Foi marcado como rês; não teve tempo de se vingar do abandono da Dionóra. Nhô Augusto fora à chácara do major confiando em seu anterior poder de mando e se esquecera que esse poder residia exatamente naqueles quatro “bate-paus” desmerecidos por ele, os quais agora obedeciam ao major Consilva. Era a hora do início da vingança do mais fraco.

Assim o sertanejo “sem-terra” (sem o poder de mando imediato) descendente por via histórica de algum grande senhor do sertão brasileiro. Sabe-se vinculado pelo nome ― que traz como uma marca ― a uma dinastia de desbravadores de terra (com nomes ilustres), mas se pergunta por que estas “terras” (o poder de mando imediato) já não são suas? Estas “terras” (a novidade que transforma) agora pertencem a famílias que outrora foram subordinadas de seus antepassados. Algum “Nhô Augusto Matraga” imprudente perdeu-as (jogando, trapaceando, impondo-se deslealmente, ridicularizando os seus próprios "bate-paus").


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

sábado, 18 de setembro de 2010

A HERANÇA DO ONTEM ETERNO

A HERANÇA DO "ONTEM ETERNO"

NEUZA MACHADO

Continuando a repensar a questão da “autoridade do ontem eterno” (Max Weber) na narrativa ficcional A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa ― apropriando-me de algumas assertivas de Max Weber ―, posso inferir que Nhô Augusto herdou um pequeno Império (representação do “ontem eterno”) e, durante algum tempo, nele reinou. Enquanto existiu a sua autoridade, foi o personagem a representação do poder patriarcal de Hegemônica Medieval Era. Observo isto pela sua atitude superior ao arrematar, no leilão, a Sariema, aquela que era muito amada pelo capiauzinho “enamorado”, capanga do major Consilva.

O povo (ainda submisso às leis patriarcais) evidentemente aplaudiu e glorificou a atitude do Poderoso Nhô Augusto.

O poder e prestígio do personagem, até ali, continuavam inalterados. Mas, havia um outro personagem ambicionando sua posição privilegiada e procurando as brechas para derrubá-lo: o major Consilva, “velho” inimigo da família Esteves.

Recorde o Leitor a resposta de Nhô Augusto, quando o Quim Recadeiro retornou dizendo que o major havia “comprado” os bate-paus: “Major de borra! Só de pique, porque era inimigo do meu pai” (A Hora e Vez de Augusto Matraga)

O major procurou e encontrou um meio de desmoralizá-lo. Sinal de que o dito poder não estava bem edificado e ameaçava ruir: mulheres, pancadarias, jogos, dívidas; tudo isto proporcionava a sua decadência.

O poder social do personagem se encontrava ameaçado por um inimigo mais perigoso que o major Consilva: o contra-poder econômico da decadência do sertão. Ora, se aquele Senhor poderoso e um chefe comunitário respeitado estava prestes a perder tudo o que possuía (família, terras), era natural que outro reivindicasse sua glória e prestígio.

O narrador roseano em princípio impõe-se e impõe-nos visualizar a figura imponente de Nhô Augusto, mas logo depois do leilão mostra que ele está a poucos passos da decadência.

As sucessivas transformações, ao longo da análise esclarecedora, são significantes dos vários estágios de vida estacionados no espaço do sertão, sobrepondo-se infinitamente, imunes à ação do tempo.

O narrador ficcional do século XX conseguiu apreender essas sutilezas, subjacentes em um espaço onde as Idades do Mundo se confundem e se completam. O narrador interativo do século XX apreendeu as várias etapas do tempo, entrelaçando-se e rejeitando-se, mas prestes a se anularem, graças à fragmentação do mundo moderno. Etapas de tempo que se sobrepuseram, se eternizaram e se eternizarão, enquanto houver um relator que as conte por intermédio da memória ― ou através da recordação ― e um ouvinte que compactue com seu ato de narrar.

A queda do personagem e suas etapas de vida representam as transformações de uma determinada burguesia que se acomodou nos pequenos vilarejos do sertão de Minas Gerais. Já não há Senhores-de-terra poderosos, mas as grandes famílias que comandavam politicamente essas localidades ainda permanecem dominando, engajadas em partidos políticos e alardeando suas origens. Os atos de heroísmo ou covardia são fatos do passado e quase não há narradores para relembrá-los.

Por este prisma confirmo que, nesta narrativa especialmente, o narrador de Guimarães Rosa apresenta o momento de crise vivido por seu personagem Nhô Augusto, um “herdeiro do ontem eterno” brasileiro, em acordo com a crise sócio-econômica que ocorreu no Brasil do século passado, principalmente na sociedade agrária sertaneja a partir dos anos trinta do século XX. O inevitável impasse, as mudanças existenciais do personagem e a própria transformação discursiva do narrador roseano representaram e representam, inclusive, a mudança de poder político; ainda: o contra-poder se transformando em poder de fato.

“Quando chega o dia da casa cair — que, com ou sem terremoto, é um dia de chegada infalível — o dono pode estar: de dentro, ou de fora. É melhor de fora! E é a só coisa que um qualquer-um está no poder de fazer. Mesmo estando de dentro, mais vale todo vestido e perto da rua. Mas, Nhô Augusto, não: estava deitado na cama — o pior lugar que há, para se receber uma surpresa má” (A Hora e Vez de Augusto Matraga)

O major, personificação do contra-poder que aspira ao poder, em A Hora e Vez de Augusto Matraga, narrativa ficcional escrita por Guimarães Rosa em meados do século XX, “compra” os capangas de Nhô Augusto. O poder do herói sertanejo do século XX, enquanto um herdeiro do “ontem eterno”, ruíra.


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

A AUTORIDADE DO ONTEM ETERNO

A AUTORIDADE DO “ONTEM ETERNO”

NEUZA MACHADO

Max Weber questiona: "Por que os homens obedecem?"

Em primeiro lugar, afirma, há a “autoridade do ontem eterno”. Os subjugados se conformam com o domínio exercido pelo Patriarca. Partindo desta assertiva de Weber ― ainda repensando a narrativa ficcional A Hora e Vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, escrita em meados do século XX ―, posso refletir que, em princípio, o personagem Augusto Esteves se assemelha à “autoridade do ontem eterno”, porque continua uma tradição dos chamados “valores exemplares”. Seu poder “exemplar” foi herdado do pai, o Coronel Afonsão Esteves das Pindaíbas e do Saco-da-Embira.

Fazer um nome que se respeite (que se respeitasse no século XX e que se respeite no século XXI) não é tarefa para entretenimento, é serviço pesado, para o qual o pioneiro necessita gastar muita energia. Necessita provar sua coragem, impor sua autoridade de “herdeiro do ontem eterno” para se fazer respeitar. Com tais atitudes, esse homem, que foi candidato a um nome nos primórdios de sua vida, gradativamente, passa a ser temido e odiado, ao mesmo tempo, idolatrado, e sua descendência deverá, por força das circunstâncias, continuar tal obra.

O narrador roseano em questão nos apresenta uma pequena comunidade mineira, sertaneja e tradicional, e seu herói: ambos em vias de se degradarem.

Eis o conflito do narrador de A Hora e Vez de Augusto Matraga: a degradação não está no espaço apreendido (o tradicional Sertão de Minas Gerais) — sua singularíssima sensibilidade (sua criatividade) capta a pureza remanescente dos antigos núcleos —; a degradação (a palavra “degradação” aqui não possui sentido pejorativo) da Era Moderna encontra-se nele próprio, porque, porta-voz que é do Artista ficcional, conhece as várias faces/fases do Homem Moderno.

Eis o conflito desta ímpar narrativa ficcional de meados do século XX: a memória (matéria épica) contrapõe-se às recordações de um mundo para sempre perdido (matéria romanesca/ficcional). O que foi transmitido por sucessivas gerações, encontra-se agora em vias de extinção. O narrador de Guimarães Rosa se dá conta de que esta comunidade existe apenas em suas recordações (matéria lírica). O narrador roseano, desta narrativa em particular, é o representante desta comunidade primitiva e, ao mesmo tempo, burguesa. Por isto, ele é primitivo e burguês. Porque se desenvolve na dialética daquele que o idealizou, cujas origens reproduzem as comunidades fechadas do passado. Assim como Nhô Augusto herdou a "autoridade do ontem eterno”, ele também herdou esta “autoridade” como duplo de um Sábio que narra suas próprias “experiências de vida” (matéria histórica, paraliterária) como herdeiro de um nome sertanejo. Essas “experiências” não são experiências pessoais, mas, enquanto cursos de vida, são experiências verdadeiras, são transcendentais, irracionais; são as “experiências” daquele que se coloca como porta-voz da burguesia sertaneja do século XX edificada nos pequenos vilarejos dominados por Senhores-de-terra poderosos.


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A INEVITÁVEL DINÂMICA DO NARRADOR FICCIONAL DO SÉCULO XX

A INEVITÁVEL DINÂMICA DO NARRADOR FICCIONAL DO SÉCULO XX

NEUZA MACHADO

O narrador de Guimarães Rosa (A Hora e Vez de Augusto Matraga) transmite as notícias do sertão arcaico — sertão como distância e fundamento —, e mostra que o poder meio primitivo dos donos-de-terra, nos sertões brasileiros, foi uma constante e, talvez, ainda o seja em virtude de o sertanejo ser muito apegado às tradições e aos valores antigos. Graças a esse apego a arte de narrar ainda sobrevive em Minas Gerais, e as figuras que se sobrepuseram ali em força e poder político alcançam ― ficcionalmente ― níveis lendários, equiparando-se aos notáveis heróis registrados nas Literaturas de todos os tempos.


As “experiências de vida”, ditas por Walter Benjamin, são relatadas em sucessivas gerações. É inerente ao sertanejo o hábito de contar estórias, passar para os mais jovens as “experiências” dos corajosos, promover normas de vida, ensinar, aconselhar e incentivar à geração futura o desenvolvimento de atos heróicos. Por esta ótica o povo sertanejo de Minas Gerais mantém um vínculo permanente com os povos primitivos.

O narrador roseano, em princípio, capta essa matéria remanescente dos povos antigos, subjacente no sertão e, por consequência, procura desenvolver uma narrativa dentro dos moldes (anteriormente sacralizados ficcionalmente) da “troca de experiências”. Em princípio o narrador sertanejo do século XX se propõe a contar a vida de Augusto Esteves, herdeiro de uma dinastia de valentes, fundamentada na força física, nas armas e na quantidade de alqueires de terra.

Weber, ao analisar o poder do Estado, diz:

“O Estado é uma relação de homens dominando homens, relação mantida por meio da violência legítima (isto é, considerada como legítima). Para que o estado exista, os dominados devem obedecer à autoridade alegada pelos detentores do poder” (Max Weber)

Esta assertiva de Weber se evidencia no início da narrativa de João Guimarães Rosa. É exatamente isto o que acontecia no século XX (ainda acontece) nos sertões brasileiros e mesmo nas grandes cidades. A realidade se apresenta em seus aspectos mais degradantes: homens (uma minoria) dominando homens (a maioria) por meio da violência, uns poucos homens escorados em instituições aparentemente criadas para servir, mas que se transformavam em forças geradoras de dominação.

Neste duplo aspecto se organizam as sequências ficcionais de A hora e vez de Augusto Matraga (narrativa apresentada aos leitores em meados do século XX): narrativa descompromissada e informativa de um mundo imaculado (à moda antiga) e, intrinsecamente, uma narrativa diferenciada em que estas “experiências de vida” do “ontem eterno” são negadas por um outro caótico mundo abalado por sucessivas e inesperadas violências.

Graças a esta dualidade as sequências diegéticas acopladas ao pensamento mimético/criador atingem um plano universal de raras proporções. A narrativa roseana capta a moderna incerteza social que envolve/ia (antigos) coronéis, jagunços, habitantes de uma pequena comunidade dos sertões brasileiros, e, de repente, percebe-se que aquele espaço singularmente ficcional representa o próprio meio social do século XX, com suas contendas entre irmãos, guerras entre países vizinhos, subordinação do mais fraco pelo poderoso.

Penso em Guimarães Rosa como refletor da burguesia periférica brasileira de meados do século XX. Seu narrador é um personagem burguês. O ponto de vista de Rosa, mediatizado pelo narrador, é um ponto de vista burguês (Atenção: o sentido da palavra "burguês", aqui realçado, não possui acepção pejorativa).

Percebo, nas primeiras sequências da narrativa, o narrador como porta-voz das experiências do dono do ato de narrar, mas, posteriormente, o narrador de A Hora e Vez de Augusto Matraga passa a representar uma determinada classe social. Mesmo que este demonstre uma criatividade ilimitada, e isto se observa quando se liberta do jugo memorialista deixando suas recordações do ambiente do sertão aflorarem espontaneamente, nem por isto deixa de apresentar sua visão social de um mundo que representa suas raízes de vida. Se ele possui sensibilidade para captar ficcionalmente o lado primitivo desse mundo, possui também suscetibilidade para observar que o mundo do século XX se encontra(va) ameaçado por forças desencontradas e poderosas.

Neste duplo aspecto, enquanto apreensão da matéria, estrutura-se a narrativa de Guimarães Rosa: se o político de meados do século XX (de qualquer camada social) luta(va) pelo poder, ou pelo prestígio advindo do poder, assim também o Senhor-de-terra do sertão também luta(va) para conservar o seu poder. É (ainda) uma luta feroz, porque é feita por meio da força física e dominação.


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6