NEUZA MACHADO
EPÍSTOLA AOS HOMENS DO FUTURO
NEUZA MACHADO
Meus Amigos do Futuro, em meu tempo, neste último Domingo de Outubro do anno de 2001 (28/10/2001) – principalmente em meu Agorá –, cultuamos a chamada Língua Padrão. A Língua Padrão de minha realidade brasilesa segundo os especialistas deverá estar acima dos regionalismos e condizente com os mestres do idioma brasilês. Deveremos estar atentos à correção da linguagem e observar com acuidade os cânones gramaticais prescritos pela tradição clássica, se quisermos o aval de nossos censores. Nossas leis gramaticais impõem severos castigos aos infratores. Os textos técnicos – excetuando os textos artísticos – só serão avaliados como corretos, se não apresentarem solecismos, cacografias, cruzamentos léxicos, expressões viciosas, barbarismos, impropriedades, vícios de tratamento, deformações (alterações na forma das palavras), et cetera, etc. Assim como os portugueses, os brasileses cultos são muito cuidadosos com o idioma pátrio. Aqui, acreditem!, só permitimos a incursão de línguas estrangeiras. Adoramos outras línguas! Abrasilesamos palavras oriundas de outros países, batemos palmas para o idioma alheio, mesmo que o falante seja analfabeto em sua língua de origem, e perseguimos, implacavelmente, os falantes brasileses das camadas dialetais não conceituadas.
Por esta razão, vocês estão apreendendo aqui, nesta minha cartinha, um leve tom solene e o banimento de palavras chulas e expressões impolidas. Emprego termos adequados porque, quomodo autêntica defensora de uma forma de falar correta, vou sempre consultar a Gramática da Língua Portuguesa Européia, uma vez que não desejo ser admoestada por meus conterrâneos. Às vezes, consulto o dicionário de minha Língua Pátria e descubro que a maior parte das palavras de meu idioma provém do Latim Vulgar. Para vocês entenderem aí no Futuro, o Latim Vulgar era a forma de falar das camadas incultas de Roma. Os soldados romanos – aqueles que alargaram as fronteiras de Roma e impuseram o idioma latino aos perdedores – eram oriundos da plebe iletrada, e foram eles, os iletrados romanos, que conquistaram uma boa parte do Mundo daquela época. Herdamos nosso idioma tão amado desses valerosos soldados, os quais souberam dignificar sua pátria de origem. Os povos autóctones eram obrigados a ceder seus espaços territoriais aos invasores romanos, perdiam o direito de administrar seus domínios e, ainda, eram obrigados a aceitar o vulgar idioma do vencedor. Entendam, meus Amigos do Futuro!, a nossa atual decepção: não pudemos herdar o Latim Culto, porque os intelectuais romanos, autênticos ditadores das normas gramaticais do Latim Clássico, preferiram o conforto da Urbe. Enquanto os soldados lutavam e instituíam o tal idioma deturpado, o poderio de Roma se alargava. Mas, mesmo assim, como herdeiros da Língua do Lácio, inculta e bela, procuramos sempre hierarquizar o idioma pátrio, talvez, numa tentativa de esquecer o início de nossa trajetória lingüística de base vulgar. Por estas inúmeras razões, cultuamos a severidade lingüística e não respeitamos as camadas dialetais que não se enquadram nos pré-requisitos normativos do bem-falar. Mas, adoramos os idiomas alheios!, mesmo que os falantes sejam analfabetos em suas línguas de origem. Se vocês vierem, um dia, nos visitar, de volta para o passado, constatarão o que acabo de lhes dizer: não há um canto sequer do Brasil Varonil, neste final de outubro de 2001, sem a contribuição de idiomas estrangeiros. E acreditem em mim: para os brasileses, é uma vergonha sem limites não saber pronunciar corretamente o idioma alheio... E, no entanto, batemos palmas para o estrangeiro que sabe estropiar com ou sem elegância nossa língua brasilesa inculta e bela.
Meus Amigos do Futuro!, venham nos visitar! Entrem no túnel do tempo e retomem o passado. Este meu presente será o passado de vocês. Venham informar-me o que tanto desejo saber: vocês continuam falando o brasilês? Espero que o Brasil do Futuro aceite suas diversas características dialetais, superando a insegurança lingüística que o faz prestigiar outras línguas que não a própria. Só assim irá amadurecer como Nação Soberana. Os diversos estratos lingüísticos deveriam ser respeitados e não ridicularizados, o que, normalmente, ocorre por aqui.
No próximo Domingo enviar-lhes-ei outras notícias. Aguardem-me! E recebam o meu abraço transecular!
ODISSÉIA MARIA, filha legítima de Antônio Aquileu e Jane Briseides, descendentes de Gloriosos Caçadores de Onças Pintadas e Jaguatiricas Noturnas de Minas Gerais, uma região misteriosa situada na parte Leste do Brasil Varonil.
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