João Teoria e Maria Prática se conheceram num desses encontros aleatórios, que o destino trama sem que a gente possa sequer imaginar o desfecho. Era uma tarde de sábado do carnaval carioca. Ele, olhando para o céu, sozinho em meio à multidão que se aglomerava na Avenida Rio Branco, absorto em pensamentos, buscando encontrar o sentido da vida. Ela, olhando para o chão, nervosa, praguejando, buscando encontrar o brinco de argolão que acabara de cair, de tanto que ela sambava. Quis o destino que as linhas de suas vidas se encontrassem numa baita cabeçada de Maria no peito de João, onde ela, perdendo o equilíbrio, caiu com as pernas pro alto, "pagando um mico" imenso no centro do Centro do Rio de Janeiro.
Não sei dizer se foi amor à primeira vista, e talvez os dois nem pudessem perceber que aquele era um momento mágico, daqueles que só ocorrem uma vez a cada milhão de anos, onde os astros, os deuses, ou seja lá quem for, entram em acordo, para fazer surgir uma relação duradoura, eterna e apaixonada entre dois seres. Maria, que já estava p... da vida, cumprimentou "docemente" o recém-conhecido:
- Merda! Tu não olha pra onde anda não, ô...!!??
- Des... desculpa-me, por favor, senhora, ahn..., senhorita! Não tive a intenção de machucar-te - ele respondeu cheio de remorsos, estendendo a mão para ajudá-la a se levantar.
Ela se recompôs e observou de alto a baixo aquele cara esquisitão, andando de terno no meio dos foliões. "Que cara doido!" - ela pensou, mas olhou fundo nos olhos dele e reparou que aquele era diferente dos muitos outros homens que havia conhecido em toda sua vida. Aceitou sua mão estendida, levantou-se e ajeitou a micro-saia que mal escondia as fartas nádegas, cobertas de confetes e purpurina. Enfim , reconheceu:
- Eu também lhe devo desculpas. Eu estava distraída, procurando um brinco que se perdeu.
- Este? - ele lhe apontou uma argola dourada enorme, localizada perto dos pés dela.
Ela baixou os olhos para o objeto, verificou que o outro par do brinco continuava preso à orelha e, abaixando-se para pegá-lo, constatou:
- Ué... é esse mesmo! Muito obrigada!
Era o destino, pregando uma peça neles. Ela colocou o brinco de volta, deu um sorriso pra ele e perguntou seu nome:
- João Teoria, teu criado! - ele respondeu.
- Muito prazer! Maria Prática, sua malcriada! - e riram a valer.
Foram andando em direção à Lapa, conversando e se conhecendo, e entraram num barzinho para beber alguma coisa. Ela pediu uma cervejinha e ele, um vinho português. Ambos falavam muito, e a impressão que se tinha é que já se conheciam há muitos milênios. Descobriram muitas diferenças entre si, mas as afinidades, mesmo que poucas, eram suficientes, para que a alma dele se encaixasse perfeitamente com a dela. Ele era um pouco mais jovem, apesar de parecer mais velho. Gostava de ler livros, jornais, artigos culturais, só assistia a filmes "cabeça" e peças teatrais com profundo teor filosófico. Ela, toda moderninha, gostava era de muita badalação e de estar sempre na moda. Curtia boites, ia em baile funk (apesar de não gostar muito), carnaval, praia, viagens e tudo onde a adrenalina fosse pras alturas. Também era fã de pára-quedismo, asa delta, astrologia, fast-food e outras facilidades do mundo ocidental.
Já eram quase nove horas da noite, e, apesar do verão carioca, um vento frio que vinha da Cinelândia até o Passeio estava gelando as pernas, os ombros, os braços, enfim, o corpo seminu de Maria. Prontamente, seu companheiro de conversa e de copo ofereceu-lhe o terno, para que ela não pegasse uma pneumonia. Agradecida, ela cobriu os ombros e falou:
- Brrrr... Obrigada, mas acho que a gente precisa mesmo é de um bom samba no pé. Vamos ali pra praça dos Arcos da Lapa. 'Tá rolando um pagode legal ali, e o frio vai passar despercebido.
- Mas eu não sei sambar, muito menos dançar pagode. - ele se esquivou.
- Ora! Deixa de frescura! Hoje é carnaval. A gente pode fazer o que quiser. Eu te ensino o pagode. - e se levantou, enquanto ele ainda se mantinha grudado na cadeira. - Como é que é? Vem ou não vem?
E lá se foram para o meio da multidão. Quem reparasse talvez até pudesse achar engraçado aquele casal maluco, ela de terno e mini-saia e ele dançando com o molejo de um robô enferrujado, tentando acertar o passo da música, que soava ensurdecedora pelos alto-falantes da Lapa. Só que ninguém olhava pra eles. Depois de um certo tempo, ele até que já estava dançando mais ou menos direito, e ela ajudava, tentando não inventar muitos passos novos de uma vez. Não preciso nem dizer que o terno dele já estava pisoteado pelas centenas de pés, que se aglomeravam no local. Dançaram, beberam, paravam pra conversar, depois dançavam de novo, e ficaram nisso até altas horas da madrugada.
Quando já estava quase amanhecendo, os dois estavam sentados num dos degraus que envolvem a praça dos Arcos. Estavam ali, meio bêbados, calados, ele, quase dormindo, e ela, roncando, aconchegados um ao outro, num abraço que espantava o frio, com o terno, sujo e roto, servindo de cobertor. Ele já estava conscientemente apaixonado por ela, e ela, por ele. Só que ela ainda não sabia. Lentamente, o sol veio surgindo, acariciando os cabelos castanhos daquele inusitado casal, anunciando um domingo de muito calor, e João Teoria abraçou com mais ardor sua companheira. Olhou para aquela bela mulher, a cabeça recostada em seu ombro, dormindo o décimo quinto sono, e sussurrou no ouvido dela:
- Acorda, Maria! Já é dia! - e até falando ele fazia poesia.
Ela abriu um olho e reclamou:
- P... que pariu, me deixa dormir!
Mas aos poucos foi sentindo os efeitos da bebida, e uma dor de cabeça, que teimava em lhe martelar o cérebro no mesmo ritmo do bumbo do grupo de pagode, não a deixou voltar aos braços de Morfeu. Ela resmungou, fazendo uma cara feia:
- Ugh! Tô precisando de um Sonrisal.
Então ela se arrastou até o meio-fio, perto de um bueiro, meteu o dedo na garganta e vomitou tudo o que estava lhe corroendo as entranhas. João também estava mais pra lá do que pra cá, mas ainda não havia chegado ao ponto de se esvair no meio da rua.
- Meu Deus! Que estado lastimável, Maria! Deixa eu te levar para tua casa.
- Que vergonha! Que vergonha! - era só isso que ela conseguia murmurar.
Esperaram no ponto de ônibus um bom tempo. Ela se alojou novamente nos braços de João e desejava que esses braços fossem duas muralhas, que a escondessem do resto do mundo. Tomaram o ônibus, sentaram e seguiram calados até a quitinete, em Copacabana, em que ela morava.
João foi carregando Maria desde a portaria, passando pelo elevador, até a porta de seu minúsculo lar. Mal ela entrou no apartamento, foi tirando, como se fosse a coisa mais natural do mundo, o bustiê, que lhe cobria a parte de cima do corpo, deixando os seios à mostra. João sentou-se no sofá-cama, meio sem graça, enquanto Maria entrava no banheiro, para tomar um banho revigorante. Demorou mais de quarenta minutos. Ele começou a ficar preocupado, pensando se ela não havia desmaiado no chuveiro, mas, quando estava prestes a arrombar a porta do banheiro, ela saiu enrolada na toalha, trazendo sua micro-saia e jogando-a num cesto com um monte de roupas entulhadas pra lavar. Numa pequena cômoda num dos cantos do quarto, ela retirou uma calcinha, um conjuntinho informal, deixou a toalha cair no chão (João tentou tampar os olhos, mas não teve tempo) e se vestiu. Ainda um pouco tonta do porre de cerveja, ela agradeceu:
- Obrigada, João! Apesar da vergonha que eu te fiz passar, foi uma das melhores noites de carnaval que eu já passei na vida. Você é um cara muito legal!
- Não foi vergonha nenhuma. - ele retrucou. - Eu também nunca havia apreciado tanto uma noite de festa como esta. Tu és também uma doçura de pessoa!
Ficaram ali, olhando-se nos olhos, e ainda havia muito o que dizer, mas não sabiam por onde começar. Ele ensaiou uma despedida:
- Bem... acho que eu devo ir embora...
- Espera! Toma um cafezinho. Apesar de estar meio grogue, acho que dá pra sair uma fumacinha gostosa.
- Não quero te importunar. Tu precisas é de um bom descanso.
Ela não soube o que responder, pois realmente precisava dormir, mas ao mesmo tempo queria que ele ficasse. Então, meio indeciso, ele continuou:
- Eu... eu gostaria... eu queria apenas dar-te... - e engoliu em seco - um ósculo.
Ela olhou meio estupefata pra ele, como quem não estava entendendo nada, e perguntou:
- Um óculos??!! Mas pra quê eu preciso de óculos? É alguma brincadeira sua?
- Não! Não é "óculos". Eu disse "ósculo".
- E o que é isso? - ela perguntou ainda sem entender o que significava aquele momento.
- Mostrar-te-ei na prática. - e colou suavemente seus lábios nos dela.
********
Na quarta-feira de cinzas, quando Maria estava conversando com sua amiga, Ana Política, revelou que João ficara com ela naquele domingo de manhã, mas (para espanto de Maria) ele nem tentou partir para uma aventura sexual. Apenas deitou-se ao lado dela naquele sofá-cama, e dormiram agarradinhos, num clima de inocência, que há muito tempo ela não curtia.
- Não acredito! - Ana Política exclamou espantada. - Quer dizer que não rolou nem uma... você sabe... nenhum nheco-nheco??!!
- Claro que rolou! Mas isso foi bem depois, de noitinha. - e suspirou. - Ai... foi muito bom!
- Me conta! Me conta tudinho!
- É engraçado que o João parece ser meio antiquado, até um pouco chato, com a mania que ele tem de se expressar de uma forma assim... erudita demais. Ele chama minha bichinha de "vulva"; insiste em usar o "tu" ao invés do "você"; recita poesias no meu ouvido; fala muito e age pouco... apesar de que eu a-do-rei quando ele me deu aquele "ósculo"... hummmmm....
E fechou os olhos, como se estivesse recordando a cena toda. E continuou descrevendo o novo namorado:
- Apesar de todo esse jeitão esquisito, sabe que eu gosto muuuuuuito dele? Ele me completa, e, modéstia à parte, eu também sou o que ele precisa. Ele é diferente de todos os meus antigos namorados. Com ele eu sinto um... sei lá o quê... um tchan, uma coisa... Talvez ainda seja muito cedo para afirmar, mas eu acho que não conseguiria mais viver sem ele...
Ana Política e Maria Prática continuaram a conversar sobre seus casos de carnaval, constatando o quão importante foi aquele encontro casual. Eles ainda não sabiam, mas os dois juntos - um, o alicerce, outro, a estrutura - tornariam não apenas suas vidas mais belas, mas trariam a evolução de toda a humanidade. E, enquanto isso, o Destino continuava a mexer seus pauzinhos, tratando de cuidar da sementinha de amor que ele havia feito surgir, pois há muito tempo ele queria unir Teoria e Prática, para que ambos, lado a lado, pudessem viver plenamente tudo o que ele, o Destino, estava reservando para os dois... pelos séculos dos séculos...
muto bom o seu conto de carnaval, teórico e prático, bem nítido nas descrições, um abraço,
ResponderExcluirrogel samuel