CELSO FURTADO: TESES SUBJACENTES ÀS IDEOLOGIAS REVOLUCIONÁRIAS
NEUZA MACHADO
No último capítulo do livro Os Ares do Mundo publicado pela editora Paz e Terra, em 1991, Celso Furtado orienta os leitores na busca de uma bibliografia que ofereça uma boa base de leitura e reflexão para reconsiderar atitudes futuras sócio-culturais, apresentando trinta enfoques que permitem analisar e compreender as Ideologias Revolucionárias do passado.
Assinalo aos leitores do blog que no item 12 pode estar a chave para entender por que a ascensão político-social-econômica da burguesia não foi acompanhada pelas camadas populares (à época, ainda, submissas ao poder da burguesia, apesar da ilusão de terem partilhado da vitória contra a classe aristocrática). A burguesia “foi sempre um ramo das classes dominantes”, como bem avaliou Celso Furtado. Se no momento da refrega entre aristocracia e burguesia – gigantes burgueses da Era Moderna em ascensão lutando com os gigantes aristocráticos da já finalizada Era Medieval –, os burgueses se saíram vencedores com a ajuda das classes desprestigiadas, atualmente, seria um erro pensar que, novamente, a classe operária se deixaria enganar numa guerra que visa somente aos interesses dos que se acham os donos do poder.
É importante, neste momento, entendermos os significados diferenciados de “Governo Monárquico”, “Governo Imperial”, “Governo Ditatorial”, “Governo Populista” e, principalmente, “Governo Popular”. As quatro primeiras expressões estarão sempre relacionadas com as classes ricas dominantes e classes intelectuais pretensamente superiores (mesmo com os bolsos vazios) e continuarão sempre a querer impedir a evolução de um Governo dito Popular.
Apesar dos vinte anos já passados, em relação à publicação destas assertivas de Celso Furtado sobre “ideologias revolucionárias”, seus pensamentos ainda são passíveis de atenção, na medida em que estejam relacionados ao atual momento da política brasileira. Para a compreensão do que se observa hoje no Brasil, neste início de 2012, penso que uma leitura completa do livro de Celso Furtado – Os Ares do Mundo – será de vital importância.
TESES SUBJACENTES ÀS IDEOLOGIAS REVOLUCIONÁRIAS
Celso Furtado
1. A angústia humana segregou a ideia de Revolução: reconquista de uma perfeição perdida. Essa visão de Platão conheceu projeções no mundo cristão. O bom sauvage de Rousseau é um dos múltiplos retornos a esse mito.
2. O homem – segundo a interpretação que nos dá Hegel, em sua Estética, da Antígona de Sófocles – é e será um animal conflitivo, dado que o processo de socialização é necessariamente parcial, permanecendo a atividade humana aberta para a liberdade. Programar o humano como ser social não significa esgotá-lo como projeto. Os conflitos que surgem no indivíduo podem ter projeções sociais, o que faz do homem um ser potencialmente em revolta. É essa dimensão antropológica do pensamento hegeliano que se perde de vista à medida que a ideia de ruptura se circunscreve à esfera das relações de produção.
3. Segundo o mito dos “bons velhos tempos” que expõe Platão no Timeu, os homens foram originalmente governados diretamente pelos deuses, a ordem social prolongando a ordem natural. Na República, Platão demonstra por uma reductio ad absurdum que a vida social é um tecido de conflitos. De acordo com essa visão, a ruptura com o passado requer a destruição das instituições que impedem o homem de identificar-se com o coletivo, e que são o fundamento do individualismo: a família e apropriedade. Isso seria particularmente verdade no caso dos indivíduos responsáveis pela direção e segurança dos negócios coletivos.
4. Revolução não é apenas a desmontagem da estrutura social. Também inclui a reconstrução desta sobre novas bases. A antropologia filosófica de Platão nos oferece uma interpretação do fato político, partindo da natureza compósita da estrutura do homem. A vida social levaria sempre ao conflito: as forças antagônicas, provisoriamente contidas, tendem a voltar à tona. Nenhuma revolução é definitiva. Para Platão, a “força reativa do devenir” tende a minar a ordem racional estabelecida pelo homem.
5. A importância da Revolução Francesa como experiência histórica reside em que abriu espaço à confrontação de forças sociais conscientes, permitindo a percepção do Estado como armadura do sistema de dominação social. Melhor do que ninguém, Babeuf expressou essas ideias: a) a verdadeira Revolução não pode ser a substituição de um grupo de exploradores por outro; b) o povo não tem condições de assumir o poder, portanto deve haver uma fase de transição sob a forma de poder ditatorial exercido em nome do próprio povo, durante a qual seriam destruídas as bases do sistema de exploração do homem pelo homem.
6. As ideias de liberdade e de democracia constituem a principal herança política clássica.
7. A visão da luta de classes como motor da História é um subproduto intelectual da Revolução Francesa.
8. O projeto de reconstrução social que medra no século XIX funda-se em uma ideia de inspiração antropológica: a da valorização do irracional em Fourier. A civilização seria inseparável de um sistema de repressão.
9. A síntese de Marx, a partir de Hegel, introduz uma redução sociológica: a alienação surge da divisão de trabalho, condição necessária para que formas sociais superiores sejam alcançadas.
10. Segundo essa síntese, a Revolução é engendrada pelas condições sociais, pela luta de classes, se bem que a consciência de classe não brote espontaneamente.
11. A insegurança dos indivíduos é traço básico da sociedade capitalista. A consciência de classe não decorre da simples percepção da própria posição social, percepção que possuía o servo; ela somente se manifesta quando existe percepção dos antagonismos geradores da insegurança pessoal. A busca de segurança abre caminho a novas formas de organização social.
12. A ideia de que classe operária é o vetor de novo sistema de valores funda-se em simples analogia com a ascensão da burguesia. Mas esta última foi sempre um ramo das classes dominantes, sem vínculos orgânicos de divisão social do trabalho com a classe feudal.
13. A dinâmica da luta de classes, ao transformar a massa trabalhadora em mercado consumidor de crescente importância, criou as condições de sua integração cultural no mundo burguês.
14. A luta de classes influenciou em duas direções: a) a visualização do desenvolvimento das forças produtivas como elemento criador de tensões que engendram formas sociais superiores; à medida que as tensões foram sendo canalizadas, o capitalismo “anárquico” foi substituído pelo “organizado” e as funções do Estado na ordenação econômica e na administração do “bem-estar social” adquiriram crescente importância; b) a percepção dos valores substantivos como epifenômenos – eflorescência do desenvolvimento das forças produtivas –, o que cerceou a formação de uma visão global do homem, de uma antropologia não-reducionista.
15. A versão marxista da dialética de Hegel produziu a ideia de que os obstáculos institucionais (gerados pelas relações de produção) ao desenvolvimento das forças produtivas conduzem a rupturas violentas. Essa ideia fundamentou as doutrinas revolucionárias voluntaristas que visam à destruição das instituições pré-capitalistas consideradas como freio à acumulação e ao desenvolvimento. Foi com base nesta doutrina que se realizaram os grandes trabalhos de engenharia social do século XX.
16. A Revolução somente se faria possível quando as classes exploradas e oprimidas tomassem consciência da própria situação, o que pressupõe a existência de uma “teoria” capaz de demonstrar que a ordem social presente funda-se na dominação da maioria por uma minoria (ou por agentes estrangeiros) e que essa dominação é obstáculo ao pleno desenvolvimento das forças produtivas. A Revolução é feita contra a exploração e o atraso, e como a massa não está preparada para autogovernar-se, uma vanguarda esclarecida e eficaz deveria assumir esse papel. Estamos, portanto, de volta à ideia central de Babeuf. Lenin não fez mais do que elaborá-la, codificá-la e levá-la à prática com êxito.
17. A crítica principal a essa doutrina funda-se nas ideias dos anarquistas, principalmente Bakunin, segundo os quais um sistema autoritário não pode dar origem a uma sociedade sem classes. Um tal sistema dara à luz, necessariamente, novas estruturas de privilégios. Também cabe assinalar a insuficiência da percepção do fenômeno burocrático como freio à expansão das forças produtivas.
18. Se a reconstrução social pós-revolucionária faz-se no sentido de eliminar os obstáculos à acumulação, as desigualdades sociais tendem a recompor-se ali onde elas favorecem o processo acumulativo.
19. O projeto leninista de reconstrução social assumiu a forma de ampla mudança nas relações de produção: o objetivo limite era organizar o emprego da força de trabalho de forma que a criação de excedente pudesse ser controlada em sua totalidade por autoridade central. Um triplo objetivo é visado: a) utilização plena dos recursos disponíveis; b) redução das desigualdades nos padrões de consumo dos distintos grupos sociais; c) obtenção do máximo de acumulação compatível com os dois objetivos anteriores. Para alcançar esses fins, fez-se necessário, em primeiro lugar, construir um sistema produtivo capaz de alimentar um forte processo de acumulação. No caso da União Soviética, a realização desse projeto foi facilitada pela existência de uma base ampla de recursos naturais, pela preexistência de um núcleo industrial importante, pela possibilidade de extrais um amplo excedente no setor agrícola e pela aquisição maciça de tecnologia do exterior. Sob este último aspecto permaneceu uma forma de desenvolvimento dependente.
20. A reconstrução social assumiu formas diversas de legitimação nos países de desenvolvimento retardado. Em Cuba, ela se apresentou como um movimento de libertação nacional. Na Etiópia, como um esforço de preservação da unidade nacional.
21. De maneira geral, nos países de capitalismo incipiente ou de penetração desigual, os projetos de engenharia social produziram, de imediato, um uso mais intensivo dos recursos produtivos já disponíveis. E também permitiram o exercício de um comando mais eficaz sobre a utilização do excedente, bem como uma ativação das forças sociais.
22. Nesses países de capitalismo retardado, colocou-se imediatamente o desafio de transformação do Estado e da obtenção de novas formas de legitimação do poder. Dificuldades especiais foram enfrentadas nos países do Leste europeu, tutelados pela União Soviética, onde a legitimidade do poder não teve bases políticas, ficando na total dependência de avanços sociais e econômicos.
23. Por todas as partes, o projeto de reconstrução social enfrentou dificuldades sensivelmente grandes no setor agrícola. A organização coletiva de produção agrícola somente se torna viável a um nível de acumulação muito mais elevado do que aquele que havia sido alcançado nesses países.
24. A Revolução Cultural chinesa foi uma tentativa de utilização do mito da ditadura do proletariado para debilitar o sistema tradicional da cultura e reforçar o poder central de natureza essencialmente burocrática.
25. Nas experiências de engenharia social o Estado comportou-se sempre como instituição monitora da formação e da utilização do excedente, o que com frequência inibiu o desenvolvimento da sociedade civil.
26. Na agricultura coletivista colocam-se problemas elementares: como controlar sem centralizar? Como centralizar sem reduzir os estímulos? Como delegar o poder de decisão sem perder o controle da formação do excedente e, mesmo, da alocação deste?
27. A estrutura da empresa capitalista provém das organizações militares: ela deve assegurar uma estrita disciplina no trabalho, o que apenas se consegue com rígida hierarquização de funções. A opção à empresa capitalista é a organização fundada na unidade de propósitos, cujo tipo ideal é a autogestão. Mas como conciliar esta com a preservação do comando sobre a formação do excedente? Se o objetivo é acelerar a acumulação, a tendência será insistir na concentração do poder. É o que veio a ser conhecido como “modelo soviético”. A evolução social passa a ser comandada pela lógica da acumulação. Demais, a empresa hierarquizada pressupõe um eficiente sistema de incentivos que necessariamente conduz a ampla diferenciação salarial entre os que nela trabalham. O poder sindical, neste caso, não pode assumir os interesses da empresa, a menos que tenha condições para interferir na sua política de preços. A conciliação entre objetivos sociais e econômicos reintroduz sub-repticiamente a lógica do mercado e, no caso dos países atrasados, a dependência externa.
28. Estava embutido nas utopias que acionaram os movimentos sociais do século XX um modelo de sociedade voltada para a satisfação prioritária das necessidades fundamentais do homem. A visão antropológica subjacente apontava, portanto, para um homem tendente a saturar suas necessidades, a alcançar a plenitude, a estancar a sua angústia. Perdia-se de vista a “força reativa do devenir”.
29. A instabilidade social inerente ao capitalismo engendra insegurança ao nível do indivíduo e reduz a legitimidade das estruturas de privilégios. Contudo, isso não desacredita o produtivismo que está na base da civilização capitalista.
30. O formidável trabalho de engenharia social realizado neste século fundou-se em doutrinas diretamente derivadas das experiências revolucionárias dos dois séculos anteriores. De uma época de revoluções espontâneas passou-se a outra, de revoluções fruto de um voluntarismo guiado por doutrinas codificadas. Assim, pela primeira vez a História assumiu a forma de desdobramento de projetos concebidos a partir de elucubrações teóricas. Após a engenharia social – um sonho de Prometeu que terminou em pesadelo –, por que caminho tentarão avançar os homens em sua busca perene da felicidade?
Paris, julho de 1980
(FURTADO, Celso. Os Ares do Mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991: 328 - 333)
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