CELSO FURTADO: DE GAULLE E O NOVO POLICENTRISMO
NEUZA MACHADO
Celso Furtado, neste capítulo de seu livro Os Ares do Mundo editado em 1991 (é importante que se registre a data desta análise de Celso Furtado, pois já se passaram 20 anos desde então), relembra os anos em que fixou residência na França (em virtude de seu exílio), desenvolvendo também, ao longo de sua explanação, a liderança de Charles de Gaulle em relação à recuperação do espaço francês na arena internacional, pós a Guerra Fria de caráter geral que teve seu auge em princípios dos anos 60.
PARA A REFLEXÃO DO LEITOR, DEPOIS DA LEITURA DO CAPÍTULO, PEDE-SE UMA REDOBRADA ATENÇÃO PARA COM A FINALIZAÇÃO DO TEXTO DE CELSO FURTADO:
“Ao discutir o tema do poder econômico em termos o mais possível amplos eu me empenhava em fazer que os nossos problemas* fossem encarados como de interesse geral, devendo todos os povos contribuir para sua solução. Era necessário fazer compreender que somos todos interdependentes, que as soluções têm que ser globais. Eu tinha presente no espírito o bloqueio criado no mundo universitário norte-americano pela compartimentação de temas e problemas. Não desejava ser visto como um especialista em Brasil, nem mesmo em América Latina. Sabia que nada se compreende de Terceiro Mundo se não se parte de uma visão global de economia internacional, e em particular da dinâmica das economias dominantes. A verdade é que, para perceber o que se passa na América Latina, é essencial partir do estudo dos Estados Unidos, e pelo que eu saiba não existia então nenhum centro dedicado ao estudo desse país como um sistema de poder mundial, nem mesmo na Europa ocidental.” (Celso Furtado)
* “nossos problemas” = problemas do Brasil e da América Latina nos anos tenebrosos que assinalaram a segunda metade do século XX.
DE GAULLE E O NOVO POLICENTRISMO
Celso Furtado
Nos Estados Unidos, meu campo de ação confinava-se no mundo universitário. E o clima geral era de pouca simpatia a alguém que se fizera notório por atividade ditas “subversivas” na América Latina. O inconformismo de um latino-americano tendia a ser interpretado como hostilidade aos Estados Unidos, cujo governo assumia em toda a região, exceto em Cuba, a defesa do status quo social.
Na França, as possibilidades de ação eram mais amplas; inexistia aquela separação entre a vida intelectual e a atividade política característica dos Estados Unidos. Demais, era a época em que, sob a liderança de Charles de Gaulle, os franceses procuravam recuperar espaço na arena internacional. A Guerra Fria alcançara seu paroxismo na crise dos foguetes de Cuba, em 1962, e conhecia novos desdobramentos com o conflito do Vietnã. Enquanto a Inglaterra mantinha uma atitude caudatária que excluía toda iniciativa, empenhando-se na defesa dos restos de sua influência imperial, e a Alemanha se concentrava no formidável esforço de reconstrução de seu poder econômico, comportando-se como um “anão político” – uma mente lúcida como Karl Jaspers chegou a afirmar que os alemães deviam comportar-se como se sua pátria fossem os Estados Unidos –, a França gaullista levantava-se na ponta dos pés e resgatava na plenitude sua soberania nacional.
As rachaduras que começavam a se manifestar no sistema de poder americano – o dólar iniciava então o seu declínio como moeda-reserva – são habilmente exploradas por de Gaulle com gestos espetaculares, como o reconhecimento do governo de Mão Zedong e a desvinculação das forças francesas, em particular as estacionadas na Alemanha, do comando da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Neste último caso, não se tratou de desfazer a Aliança Atlântica, mas de recuperar autonomia de ação e assumir a responsabilidade do próprio destino.
Em realidade de Gaulle explicitava as implicações da evolução da tecnologia militar que estava apagando a diferença entre grande e pequeno poderes termonucleares. Passava a prevalecer a doutrina chamada de “ferrão de abelha”, segundo a qual o que importa na guerra nuclear é menos vencê-la do que ser suficientemente forte para golpear o adversário de forma que este, mesmo vitorioso, fique irremediavelmente mutilado. Assim, o custo da vitória deve ser suficientemente grande para desencorajar qualquer agressor. Alcançada essa massa crítica de poder, a França já não tinha por que submeter-se a um sistema de decisões nas relações internacionais capaz de arrastá-la automaticamente a uma confrontação termonuclear. Alguns precedentes, como o da Baía dos Porcos em Cuba, haviam deixado claro que os americanos estavam dispostos a aceitar elevados riscos na confrontação com a União Soviética. As decisões tomadas por de Gaulle em 1965-1966 colocaram a França em posição privilegiada: preservava-se a Aliança Atlântica, pelo menos enquanto persistisse a confrontação com o Pacto de Varsóvia, mas o sistema de decisões seria suficientemente flexível para que os riscos que a França assumia fossem apenas aqueles que seu governo consentisse em aceitar explicitamente.
Os Estados Unidos se comportavam como se prescindissem do resto do mundo: voltados para o seu imenso mercado interno, satisfaziam-se com uma imprensa provinciana e círculos universitários profissionalizados. Esse quadro apenas começava a modificar-se. Em contraste, na França desde o século XVIII existe um contínuo entre atividade intelectual e o mundo político e social. Daí que o debate de ideias nesse país “conte mais” e mais facilmente assuma a forma de uma abertura para o exterior. Assistia a razão a de Gaulle quando afirmava: “Ninguém nos dá lição de universalismo”.
Não surpreende, portanto, que Paris seja uma caixa de ressonância sem par em todo o mundo. Mas, como já observava Balzac, tudo nessa cidade é rapidamente moído, usado, superado. Daí a inconveniência de expor-se demasiado nessa vitrine. Quando lá aportei, em junho de 1965, com o plano de instalar-me por longo período, fui residir em um subúrbio modesto, na região sul da cidade, onde ninguém me conhecia senão pelo fato – assunto de comentários no clube que passei a frequentar para jogar tênis – de que mantinha luzes acesas até tarde da noite. Não apenas me isolava para trabalhar, convencido de que a luta que me cabia travar era no plano das ideias, mas também para evitar excessivo envolvimento na diáspora brasileira e latino-americana, então em rápido crescimento.
A França se transformara consideravelmente nos quase dois decênios transcorridos desde que eu lá estudara como universitário. De Gaulle marcara o país recentrando-o e restaurando-lhe a consciência de um destino histórico próprio. A diferença maior com o passado estava, entretanto, na importância crescente que se começava a atribuir à solidariedade europeia na visão do mundo.
Para mal ou para bem, a França chegara a acumular considerável atraso vis-à-vis dos países que formam a vanguardamda da civilização material moderna, o que era particularmente visível no que diz respeito a equipamentos sociais. Certo, não se produziram nesse país os excessos da “destruição criativa” que em outras partes levaram à perda de parcela importante da herança cultural. Mas havia que pensar em abrir-se ao exterior, em expor-se à concorrência externa, em abandonar as ilusões do protecionismo “imperial”. Essa transição foi facilitada pela política de integração no Mercado Comum Europeu.
Na boa tradição francesa, o redirecionamento no processo histórico deu-se de forma cartesiana, sem perder de vista os objetivos gerais e sem deslizar na cacofonia. Foi realizado um esforço considerável em pesquisa tecnológica em setores estratégicos como o nuclear, o espacial e aeronáutico, o energético e petroleiro, o da mecânica de precisão, o da química fina e, especialmente, o da informática.
O esforço de pesquisa foi liderado e executado em boa parte pelo Estado, ou com seu apoio financeiro. A planificação indicativa permitiu conciliar abertura para o exterior, criação de novos espaços para a iniciativa privada, convergência de propósitos e continuidade de ação. Também à planificação deve-se a relativa harmonia alcançada entre o desenvolvimento agrícola e o do conjunto das atividades econômicas. O despovoamento do campo na Inglaterra, em auras de uma irracionalidade ditada apenas pelo mercado, evidenciava os riscos sociais de um laisser-faire extremado. A preservação do setor agrícola como forma subsidiária de emprego tem sido um traço marcante do desenvolvimento recente da Europa continental.
Nos primeiros vinte anos do pós-guerra a França manteve uma taxa excepcionalmente alta de crescimento e conheceu importantes mutações em sua estrutura econômica, dobrando o coeficiente de inserção no comércio internacional e alcançando posições de vanguarda tecnológica em setores de relevo. Esse desempenho favorável da economia francesa deu-se a despeito do custo elevado da liquidação concomitante de um arcaico império colonial. A liquidação tardia deste acarretou aumento da oferta de mão-de-obra na própria França, o que pressionou no sentido de tornar indispensáveis maiores investimentos sociais, mas também no de conter a elevação do custo dessa mão-de-obra. Uma relativa elasticidade da oferta do fator trabalho, conjugada a forte taxa de investimento, responde pela tendência persistente a certa concentração da riqueza e da renda, que singulariza a França no grupo de países de mais alto nível de desenvolvimento.
A crise energética de começo dos anos 70 teve amplo reflexos no comportamento das economias mais industrializadas, pois ao provocar maior abertura externa reforçou a posição das grandes empresas, levando a maior concentração de poder econômico. Mais ainda: a redobrada ênfase na competitividade internacional veio intensificar o processo de robotização, o que impôs maior margem de desemprego crônico. Abria-se novo ciclo em que tudo se subordina à competitividade internacional, passando a segundo plano as preocupações com o pleno emprego da mão-de-obra. A pesquisa tecnológica, inclusive no setor de armamentos, será igualmente posta a serviço da expansão das exportações.
Não me foi difícil perceber o quanto é pequeno o espaço que tem para ocupar, na França, um intelectual do Terceiro Mundo, não obstante a simpatia e boa vontade com que possa ser tratado. Certo: no momento a que estou me referindo, a presença dos Estados Unidos na esfera internacional desbordara por todos os lados, fazendo-se por demais incômoda. A simpatia que despertava a América Latina em parte era reflexo da repulsa que provocava a dominação que sobre ela exerciam empresas e autoridades norte-americanas. Estávamos perto do desembarque dos mariners em São Domingos. Nisso havia certamente um elemento de mauvaise conscience da parte dos franceses, dado que os americanos tinham sido os maiores críticos da política colonial da França, de cujas sequelas eles eram herdeiros no Vietnã.
Eu havia percebido com clareza que em um mundo dominado por dois gigantes antagônicos nós estávamos condenados a um estreito satelitismo político, visto que a independência com respeito a um dos dois polos levava necessariamente à subordinação ao outro. Assim, a evidência de que o próprio avanço da tecnologia militar estava possibilitando uma saída policêntrica – o que era confirmado pela linha estratégica adotada pela França – me parecia indicar que entrávamos em uma fase em que os países do Terceiro Mundo disporiam de mais espaço de manobra. De Gaulle foi o primeiro estadista a perceber essa mudança no quadro político mundial. O que explica as inúmeras viagens que fez a países da esfera de influência soviética e do Terceiro Mundo – inclusive a nove da América Latina – no correr da segunda metade dos anos 60.
Havia, portanto, espaço para iniciativas de denúncia do maniqueísmo que dominava a política internacional.
Os dois artigos que publiquei em Le Monde, em janeiro de 1966, sobre “A Hegemonia dos Estados Unidos e a América Latina”, alcançaram considerável repercussão e foram reproduzidos, total ou parcialmente, na imprensa de vários países. Dentro da mesma temática, em particular expondo a evolução estrutural da economia norte-americana, onde as grandes empresas assumiam novas formas e abarcavam espaços geográficos crescentes, publiquei ensaios em revistas de grande penetração, como Esprit e Les Temps Modernes, os quais também foram traduzidos para vários idiomas.
A repercussão dessas publicações traduzia-se em inúmeros convites para pronunciar conferências dentro e fora da França. Eu dava preferência às universidades em que havia centros de estudos latino-americanos, posto que debates que neles se realizavam constituíam pontos de partida de projetos de pesquisa com amplo efeito multiplicador. O editor Calmann-Lévy, da França, escreveu-me solicitando que desenvolvesse os artigos do Le Monde, o que fiz sem demora. O livro resultante teve ampla divulgação, logo traduzido para várias línguas.
Ao discutir o tema do poder econômico em termos o mais possível amplos eu me empenhava em fazer que os nossos problemas fossem encarados como de interesse geral, devendo todos os povos contribuir para sua solução. Era necessário fazer compreender que somos todos interdependentes, que as soluções têm que ser globais. Eu tinha presente no espírito o bloqueio criado no mundo universitário norte-americano pela compartimentação de temas e problemas. Não desejava ser visto como um especialista em Brasil, nem mesmo em América Latina. Sabia que nada se compreende de Terceiro Mundo se não se parte de uma visão global de economia internacional, e em particular da dinâmica das economias dominantes. A verdade é que, para perceber o que se passa na América Latina, é essencial partir do estudo dos Estados Unidos, e pelo que eu saiba não existia então nenhum centro dedicado ao estudo desse país como um sistema de poder mundial, nem mesmo na Europa ocidental.
(FURTADO, Celso. Os Ares do Mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991: 143 - 148)
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