CELSO FURTADO: UMA INTERPRETAÇÃO DO BRASIL
NEUZA MACHADO
Consciente de que poucos estudiosos-Internautas da História do Brasil – história referente à segunda fase do século XX – tiveram a oportunidade de parar suas vidas corridas para retomar o pensamento de Celso Furtado, permito-me publicar aqui um importante capítulo de seu livro Os Ares do Mundo, editado pela Paz e Terra.
Como estou a publicar capítulos esparsos do referido livro de Celso Furtado, convido aos meus leitores a adquirirem o livro impresso. O mais importante é ler o livro todo (livro editado pela primeira vez em 1991, não s’esqueçam da data), para que possam fazer uma avaliação correta do que aconteceu e acontece hoje no Brasil (desde o início do ano de 2003 até este ano de 2012).
Algumas conhecidas figuras políticas brasileiras e alguns intelectuais daquele momento aziago da Ditadura, inseridos nos textos de Celso Furtado – os muitos que foram exilados para outros países –, ainda continuam em evidência em nosso atual cenário político (como, por exemplo, o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso). Mas será que alguns deles mantiveram-se fiéis aos seus ideais ou será que mudaram de ideia ao retornarem ao Brasil?
UMA INTERPRETAÇÃO DO BRASIL
Celso Furtado
(Interpretação de Celso Furtado publicada em 1991: FURTADO, Celso. Os Ares do Mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991: 52 - 59)
Paralelamente ao debate do ILPES sobre a temática cepalina, que consistia em nova leitura dos textos “clássicos” à luz da experiência recente de perda de dinamismo das principais economias latino-americanas, um grupo mais restrito de brasileiros reunia-se à noite para intercambiar ideias sobre a situação específica do Brasil. Muita gente aparecia ocasionalmente – Paulo Freire, Francisco Oliveira, Estevam Strauss, Jader de Andrade, Cid Carvalho, Darcy Ribeiro, Thiago de Melo, Samuel Wainer, entre outros –, mas o núcleo permanente era reduzido. Participávamos dele Cantoni, Weffort, Cardoso e eu. Concordávamos todos em que o Brasil não fugia ao quadro geral da América Latina, mas não nos escapava que a explicação do que ocorrera entre nós tinha de ser buscada na realidade particular de nosso país. Que estaria acontecendo no Brasil? Esta a questão a ser respondida antes de tudo mais. Estávamos convencidos de que se tratava de um simples assalto ao poder, no estilo de um Pérez Jiménez, na Venezuela, ou de um Fulgencio Batista, em Cuba. Era fácil carregar as tintas a propósito da irresponsabilidade e imaturidade das esquerdas. Chegavam-me muitas cartas de amigos que me interpelavam sobre os fatos. Do professor Maurice Byé, de Paris, de Duddly Seers, que andava então pela África, de Werner Bear, que estava em Yale, de Albert Hirschman, de Princeton. Este último dizia-me em carta: “Esses eventos podem com demasia facilidade ser interpretados como a prova definitiva de que nunca houve uma chance real de que reformas viessem a ser introduzidas no Brasil, de que os que pensavam de outra forma eram incuravelmente ingênuos. Ora, eu creio que você concorda comigo em que essa interpretação é equivocada, a menos, evidentemente, que incluamos entre as inevitabilidades históricas os erros, as inépcias e crimes da esquerda”. E fazia um apelo para que eu escrevesse alguma coisa, pois muitos eram os perplexos em busca de uma luz.
Aproveitei um convite que viera de Londres, mais concretamente do Royal Institute of International Affairs (Chattam House), no quadro de uma conferência sobre “Obstáculos à mudança na América Latina”, para ordenar minha ideias sobre o que estava ocorrendo no Brasil*. [Nota 3 do livro: 53: Uma versão deste texto foi inserida, sob o título “Análise do caso do Brasil”, em Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966]. Não podia desejar um meio mais eficaz de comunicar-me com os amigos do mundo universitário. Comecei chamando a atenção para o fato de que não basta que o desenvolvimento se transforme na aspiração suprema de uma coletividade nacional para que, como objetivo político, venha a prevalecer sobre os interesses de classe e grupos dominantes.
Na tradição liberal, o desenvolvimento era visto como fruto da interação de fatores gerados dentro de uma sociedade, produto daquele instinto para a troca que Adam Smith pretendeu identificar nos homens de todas as épocas. A ideia de uma política ativa de desenvolvimento é fenômeno recente, subproduto dos esforços de estabilização anticíclica. Nas economias capitalistas maduras, a busca da estabilidade – as chamadas políticas de pleno emprego – levou naturalmente à formulação de políticas de desenvolvimento e produziu os instrumentos de regulação macroeconômica.
Esse tipo de política se aplica com êxito ali onde existe um sistema econômico apto a crescer, vale dizer, capaz de gerar seu próprio dinamismo. Não é este o caso da grande maioria dos atuais países subdesenvolvidos, cujo dinamismo depende essencialmente de fatores exógenos. Política de desenvolvimento, neste caso, seria criar as bases de um sistema econômico que, sendo apto a crescer, encerrasse um esforço de reconstrução de estruturas econômicas e sociais.
Fora de situações históricas muito especiais – a Revolução de Meiji, no Japão, a Revolução bolchevique, na Rússia –, dificilmente as classes dirigentes de um país se põem de acordo para transformar suas estruturas, nas quais se funda o seu próprio poder.
A industrialização brasileira, ocorrida a partir dos anos 30, deu-se sem modificações estruturais significativas, independentemente da existência de uma política de desenvolvimento. O ponto de partida foi a crise do sistema primário-exportador, crise que envolveu o Estado, porquanto este vinha intervindo amplamente na comercialização do principal produto de exportação, o café. Assegurando preços altos a esse produto, o governo estimulou a superprodução, agravando a crise gerada no plano internacional pelo crash financeiro de 1929.
Preso na engrenagem que ele mesmo havia criado, o governo brasileiro continuou comprando café e foi levado, por esse meio, no decurso de um decênio, a destruir o correspondente a três vezes o consumo mundial do produto, à época. Ao empenhar-se dessa forma na defesa dos interesses do café, portanto na preservação das estruturas existentes, o governo praticou uma política de defesa do nível da renda monetária. Ora, ao manter-se esse nível em condições de declínio da capacidade para importar, a política de favores ao setor cafeeiro resultou ser, em última instância, uma política de industrialização. Com a rápida desvalorização da moeda, subiam os preços das mercadorias importadas, criando-se condições favoráveis à produção interna. Dessa forma, entre 1929 3 1937, enquanto o volume físico das importações caía 23 por cento, a produção industrial crescia em 50 por cento.
A segunda fase da industrialização brasileira – o imediato pós-guerra – também foi marcada por uma política cambial concebida para a defesa dos interesses do café. Com o objetivo de sustentar os preços do produto – o governo dispunha de grandes estoques, acumulados nos anos de guerra, quando eram baixas as exportações –, praticou-se a sobrevalorização do cruzeiro, o que significava ignorar os interesses dos industriais, em particular porque na época a tarifa brasileira era específica, não acompanhando sequer a elevação dos preços internacionais. As consequências indiretas dessa medida foram as mais inesperadas. As importações aumentaram com rapidez, provocando o esgotamento das reservas de câmbio, o que deu início a um processo de endividamento externo a curto prazo. Preocupado acima de tudo com os preços do café, o governo preferiu à desvalorização cambial uma política de estrito controle das importações, a qual viria a favorecer o setor industrial. A preferência era dada às importações de insumos – a baixos preços –, com o objetivo de dificultar a entrada de produtos finais.
O que convém assinalar é que a industrialização brasileira foi menos o fruto de uma política deliberada e mais o resultado de pressões geradas no sistema produtivo pela conjuntura internacional durante os anos de depressão e de guerra e pela ação do governo na defesa dos interesses do principal produto de exportação.
Contudo, essa industrialização trouxe significativas modificações às estruturas sociais do país. Até 1930, três quartas partes da população brasileira viviam no campo, onde prevalecia a combinação do latifúndio com o minifúndio. Pouco mais de um por cento da população tinha participação efetiva no processo político. As autoridades locais, mesmo quando integradas no governo federal, estavam sob a tutela dos grandes senhores proprietários de terras. O Estado, como organização política nacional, tinha uma escassa significação para a massa da população. O Brasil era uma república oligárquica de base latifundiária.
À margem dessa sociedade essencialmente estável, surgiu como fator de instabilidade uma população urbana ocupada em atividades ligadas ao comércio exterior, ao próprio Estado e a serviços em geral. Essa população, que desfrutava do mais amplo acesso à informação, consumidora em escala maior de bens importados, sente mais diretamente os altos e baixos da política cambial. Sempre que baixam os preços dos produtos exportados nos mercados internacionais, desvaloriza-se a moeda e se transfere para os importadores o essencial da perda de renda real.
Com o declínio relativo das importações a partir de 1930, e a concomitante expansão da atividade industrial e das funções do Estado, intensificou-se o processo de urbanização. Em 1920, viviam nas zonas urbanas 7 milhões de pessoas. Quatro decênios depois, esse número já alcançava 35 milhões, subindo a proporção de 20 para 50 por cento. Como na população urbana é maior a parcela alfabetizada – e apenas os alfabetizados participavam do processo eleitoral –, a atividade política sofreu importante modificação durante esse período, deslocando-se seu centro de gravidade do mundo rural para o urbano.
À diferença do padrão clássico do desenvolvimento capitalista, no Brasil a indústria cresceu (substituindo importações que se faziam inviáveis) sem conflitar com a agricultura. Numa primeira fase, as atividades industriais foram em boa parte fruto da iniciativa de imigrantes de primeira ou segunda geração, que se mantinham isolados da atividade política, reserva de caça da velha oligarquia rural e seus prepostos. A partir da crise de 1929, em razão da queda de rentabilidade da agricultura tradicional de exportação, os investimentos se orientaram de preferência para as atividades manufatureiras. Deu-se assim uma aproximação dos interesses agrícola-exportador e industrial, o que explica a pouca resistência dos cafeicultores às transferências de renda em favor do setor industrial provocadas pela política cambial. Daí que as importantes modificações sociais, que acompanharam a industrialização e a urbanização, não se hajam refletido de forma significativa nas estruturas políticas.
As circunstâncias em que se desenvolveu o movimento operário também contribuíram para a lenta diferenciação das lideranças industriais. A forte contribuição de contingentes europeus na formação inicial da classe operária em São Paulo concorreu para que se estabelecesse um nível de salário real relativamente elevado, o que se faria evidente à medida que o desenvolvimento das comunicações provocasse a unificação do mercado de trabalho. Em condições de oferta totalmente elástica de mão-de-obra e de salários reais relativamente elevados – com respeito aos praticados nas zonas rurais de colonização mais antiga –, a classe operária assumiu precocemente atitudes moderadas, o que facilitou a tutela das organizações sindicais pelo Estado. Na ausência de antagonismos conscientes entre trabalhadores e classe patronal, os empresários industriais se habituaram a um clima social não muito distinto do que prevalecia no setor agrícola.
À falta de uma classe industrial com identidade definida deve-se em boa medida o atraso na modernização do quadro político brasileiro. As constituições políticas representaram poderoso instrumento nas mãos da velha oligarquia de base rural para preservar sua posição como principal força política. O sistema federativo, ao atribuir importantes funções ao Senado, onde os pequenos estados agrícolas localizados nas regiões mais atrasadas têm um peso considerável, coloca o Poder Legislativo sob influência decisiva dos interesses mais retrógrados. Demais, na Câmara dos deputados a representação era proporcional (pela Constituição de 1946) à população de cada estado. Maior o número de analfabetos, maior valor tinha o voto da minoria que participava do sufrágio. Como é nas regiões com mais analfabetos que a velha oligarquia tem mais peso, o sistema eleitoral contribuiu para manter o predomínio oligárquico.
Mas o controle dos centros principais de poder não basta para que a autoridade daí resultante seja aceita como legítima pela maioria da população. É exatamente ao declínio dessa legitimidade que cabe atribuir a baixa de eficácia do poder exercido pela classe que controla o Estado.
As modificações na estrutura social trazidas pela urbanização conduziriam inevitavelmente à predominância do eleitorado urbano. Essa predominância manifestou-se claramente nas eleições majoritárias – para presidente da República e para os cargos de governador nos estados mais urbanizados.
Dessa forma, criaram-se condições para que o Poder Executivo viesse a representar as forças que desafiam as oligarquias tradicionalistas, estas concentradas no Congresso. As tensões entre os dois centros de poder político tenderiam, em consequência, a agravar-se.
Para identificar as forças que vinham desafiando a estrutura tradicional de poder, convém observar mais de perto a natureza do processo de urbanização. Este teve na industrialização apenas um de seus fatores formativos. Não se tratou da urbanização de tipo clássico, caracterizada por forte crescimento do emprego nas manufaturas. No período 1950-1960, a massa trabalhadora agrícola ainda cresceu em 4,5 milhões de pessoas, enquanto as manufaturas criavam apenas 436 mil novos empregos. Contudo, a taxa de crescimento da população urbana foi praticamente o dobro da de aumento da população rural. A urbanização brasileira tem sido principalmente fruto da explosão do terciário, à qual não é estranho o processo de concentração da renda – o excedente rural é principalmente dispendido nas cidades –, de crescimento do setor público e de aumento do salário invisível auferido nas cidades graças aos melhores serviços e às economias de aglomeração.
Enquanto o emprego nas manufaturas cresceu à taxa anual de 3 por cento, a população urbana se expandiu com uma taxa de 6 por cento. As massas que se foram aglomerando nas cidades acomodaram-se em um terciário de baixa produtividade que se prolonga no subemprego e numa cultura da pobreza característica das grandes aglomerações urbanas brasileiras.
Essa população urbana, sem estrutura definida que lhe assegure alguma estabilidade e sem consciência social que não seja o sentimento de exclusão, veio a representar o novo fator decisivo nas lutas políticas brasileiras. O processo de massificação daí resultante está na origem do populismo político que caracterizaria as lutas pelo poder nos decênios recentes.
Essas circunstâncias explicam que o princípio da legitimidade do poder haja tropeçado em dificuldades crescentes. Para legitimar-se, o governo deve operar dentro de normas constitucionais, mas, para corresponder às expectativas da grande maioria que o elegeu pelo voto, o presidente da República deve visar objetivos que conflitam com as posições das forças que dominam o Congresso. Os dois princípios de legitimação da autoridade – o enquadramento nas normas constitucionais e a lealdade no cumprimento do mandato substantivo vindo diretamente da vontade popular – entram em conflito, colocando o presidente em face da disjuntiva de ter que trair o seu mandato ou forçar uma saída não convencional. Explica-se, dizia eu num esforço de síntese, que no correr de um período de dez anos um presidente haja apelado para o suicídio, outro tenha renunciado e um terceiro, sofrido a deposição pela força.
O pacto direto com a massa tem constituído, no período do pós-guerra, condição necessária para alcançar o Poder Executivo no Brasil. O candidato que se limita a apresentar um programa “realista” – sempre interpretado como visando à manutenção do status quo – será facilmente superado por outros audaciosos. Ora, a heterogeneidade da massa dos votantes exige dos líderes populistas compromissos com objetivos nem sempre conciliáveis. Por outro lado, maior a sua audácia, maior a suspeita que desperta que desperta na classe dirigente tradicional. Assim, entre ambiguidade suspeita arma-se a arena política em que se dá o jogo populista.
O conflito entre as massas urbanas, de estruturas fluidas e com líderes populistas, e o velho sistema de poder que controla o Estado permeia todo o processo político do Brasil atual. Os líderes populistas falam de modernizar o país através de “reformas de base”, “modificações estruturais”. A classe dominante tradicional utiliza habilmente a pressão populista como espantalho para submeter a seu controle os novos grupos de interesses patrimoniais surgidos com a industrialização e ocasionalmente amedrontar os seguimentos sociais médios, principais beneficiários da industrialização.
A existência de um conflito que põe em xeque o próprio funcionamento das instituições em que se apóia o poder político criou condições propícias à arbitragem militar, o que explica a facilidade com que esta se efetivou. Sem eliminar as causas do conflito, essa arbitragem promove meios para a superação do impasse. Ela tanto pode vir para consolidar a estrutura tradicional de poder, submetendo as massas a um processo de adormecimento, como para forçar mudanças nas estruturas tradicionais. Esta segunda hipótese abre espaço para um populismo militar, o qual assusta, mais que qualquer outra coisa, as classes dirigentes tradicionais e conduz necessariamente a outra forma de instabilidade. O mais provável, entretanto, é que a arbitragem militar seja apresentada, mediante manipulação da opinião pública, como encarnação do interesse nacional, retorno à estabilidade e preservação da “ordem”.
Cabe indagar: um sistema de poder que expressa as aspirações das classes dirigentes tradicionais terá meios de formular e executar uma política de desenvolvimento num país em que desenvolvimento significa necessariamente mudanças sociais? Se a resposta é negativa, não estaremos caminhando para um novo impasse, agravado agora por maior frustração das massas excluídas? A inevitável nova ruptura que se prepara não se tornará ainda mais severa com o prolongamento do novo impasse? A experiência política brasileira futura deverá esclarecer essas questões, dizia eu, concluindo essa primeira análise do processo histórico que se abrira com o golpe militar de 1964.
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