CECÍLIA MEIRELES E SEU “ROMANCEIRO” PÓS-MODERNO
NEUZA MACHADO
Cecília Meireles escreveu o seu Romanceiro da Inconfidência com incomum maestria na elaboração dos versos narrativos, à moda épica, acoplados estes a uma especialíssima sentimentalização própria da matéria lírica. Então, fica aqui a pergunta: O Romanceiro de Cecília Meireles adéqua-se ao Gênero Épico ou ao Gênero Lírico?
Enquanto professora de Ciência da Literatura e Crítica Literária, por intervenção de conhecimento teórico adquirido e até agora reelaborado, posso dizer que o extraordinário e longo poema de Cecília Meireles conceitua-se como poema narrativo epo-lírico pós-moderno (ou seja, a forma e fenômenos estilísticos do Gênero Épico já se encontram em suas linhas gerais impregnados de matéria proveniente do Gênero Lírico e das variações sócio-culturais da Era Pós-Moderna). Assim, no caso deste poema, em especial, sobressai-se esteticamente (e visivelmente) a forma de apresentação épica (já conceituada), enquanto que a tensão da matéria lírica (recordação) espraia-se sublinearmente ao longo dos versos narrativos.
Em contrapartida, o que tenciono passar, para os Internautas-Leitores deste meu Blog, é algo totalmente diferenciado de um estudo crítico. Gostaria que os meus leitores soubessem que entre os muitos poemas (épicos ou líricos) que me oferecem sábias reflexões, de conceituados autores diversos, este Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles é um dos que me emocionam para muito além do conhecimento teórico-literário.
Não fui eu que escrevi este magnífico poema, mas, enquanto oriunda do Estado de Minas Gerais, o “cenário” geográfico da epopeia dos inconfidentes, sinto-me como se cada verso tivesse saído das minhas próprias lembranças e recordações de meu passado longínquo. Enquanto os leio, os versos de Cecília são meus (aproprio-me deles), pois eles fazem parte de meu íntimo mineiro-brasileiro.
Para explicar-lhes com mais eficiência este meu digladiar teórico entre razão e emoção, permito-me buscar auxílio nos ensinamentos fenomenológicos de Gaston Bachelard, atemporal filósofo francês:
“O verdadeiro fenomenólogo deve ser sistematicamente modesto”.
"O crítico literário é um leitor excessivamente severo. Desenvolve de bom grado um complexo de superioridade”.
“Quanto a nós, acostumados à leitura feliz, só lemos, só relemos aquilo que nos agrada, com um pequeno orgulho de leitura mesclado de muito entusiasmo”.
“Está em nós, simples leitores, para nós, e só para nós. É um orgulho crivado. Ninguém sabe que na leitura revivemos nossas tentações de poeta. Todo leitor um pouco apaixonado pela leitura alimenta e recalca, pela leitura, um desejo de ser escritor.”
“Quando a página lida é demasiadamente bela, a modéstia recalca esse desejo. Mas ele renasce. Seja como for, todo leitor que relê uma obra que ama, sabe que as páginas amadas lhe dizem respeito”.
(BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. Trad. de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2005:10)
É exatamente isto que desejo expressar aos meus leitores blogueiros: “todo leitor que relê uma obra que ama, sabe que as páginas amadas lhe dizem respeito”. As páginas do Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles muito de perto me “dizem respeito”.
Como não há possibilidade de transcrever aqui o poema inteiro (mais de duzentas páginas), ofereço hoje aos meus leitores o belíssimo Segundo Canto do ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA - denominado “CENÁRIO” - de nossa poetisa maior Cecília Meireles:
CENÁRIO
Cecília Meireles
Passei por essas plácidas colinas
e vi das nuvens, silencioso, o gado,
pascer nas solidões esmeraldinas.
Largos rios de corpo sossegado
dormiam sobre a tarde, imensamente,
e eram sonhos sem fim, de cada lado.
Entre nuvens, colinas e torrente,
uma angústia de amor estremecia
a deserta amplidão na minha frente.
Que vento, que cavalo, que bravia
saudade me arrastava a esse deserto,
me obrigava a adorar o que sofria?
Passei por entre as grotas negras, perto
dos arroios fanados, do cascalho
cujo ouro já foi todo descoberto.
As mesmas salas deram-me agasalho
onde a face brilhou de homens antigos,
iluminada por aflito orvalho.
De coração votado a iguais perigos,
vivendo as mesmas dores e esperanças,
a voz ouvi de amigos e inimigos.
Vencendo o tempo, fértil em mudanças,
conversei com doçura as mesmas fontes,
e vi serem comuns nossas lembranças.
Da brenha tenebrosa aos curvos montes,
do quebrado almocafre aos anjos de ouro
que o céu sustem nos longos horizontes.
tudo me fala e entende do tesouro
arrancado a estas Minas enganosas,
com sangue sobre a espada, a cruz e o louro.
Tudo me fala e entendo: escuto as rosas
e os girassóis destes jardins, que um dia
foram terras e areia dolorosas,
por onde o passo da ambição rugia;
por onde se arrastava, esquartejado,
o mártir sem direito de agonia.
Escuto os alicerces que o passado
tingiu de incêndio: a voz dessas ruínas
de muros de ouro em fogo evaporado.
Altas capelas contam-me divinas
fábulas. Torres, santos e cruzeiros
apontam-me atitudes e neblinas.
Ó pontes sobre os córregos! ó vasta
desolação de ermas, estéreis serras
que o sol frequenta e a ventania gasta!
Rubras, cinéreas, tenebrosas terras
retalhadas por grandes golpes duros,
de infatigáveis, seculares guerras...
Tudo me chama: a porta, a escada, os muros,
as lajes sobre mortos ainda vivos,
dos seus próprios assuntos inseguros.
Assim viveram chefes e cativos,
um dia, neste campo, entrelaçados
na mesma dor, quiméricos e altivos.
E assim me acenam por todos os lados.
Porque a voz que tiveram ficou presa
na sentença dos homens e dos fados.
Cemitério das almas... – que tristeza
nutre as papoulas de tão vaga essência?
(Tudo é sombra de sombras, com certeza...
O mundo, vaga e inábil aparência,
que se perde nas lápides escritas,
sem qualquer consistência ou consequência.
Vão-se as datas e as letras eruditas
na pedra e na alma, sob etéreos ventos,
em lúcidas aventuras e desditas.
E são todas as coisas uns momentos
de perdulária fantasmagoria,
– jogo de fugas e aparecimentos.)
Das grotas de ouro à extrema escadaria,
por asas de memória e de saudade,
com o pó do chão meu sonho confundia.
Armado pó que finge eternidade,
lavra imagens de santos e profetas
cuja voz silenciosa nos persuade.
E recompunha as coisas incompletas:
figuras inocentes, vis, atrozes,
vigários, coronéis, ministros, poetas.
Retrocedem os tempos tão velozes,
que ultramarinos árcades pastores
falam de Ninfas e Metamorfoses.
E percebo os suspiros dos amores
quando por esses prados florescentes
se ergueram duros punhos agressores.
Aqui tiniram ferros de correntes;
pisaram por ali tristes cavalos.
E enamorados olhos refulgentes
– parado o coração por escutá-los –
prantearam nesse pânico de auroras
densas de brumas e gementes galos.
Isabéis, Dorotéias, Eliodoras,
ao longo desses vales, desses rios,
viram as suas mais douradas horas
em vasto furacão de desvarios
vacilar como em caules de altas velas
cálida luz de trêmulos pavios.
Minha sorte se inclina junto àquelas
vagas sombras da triste madrugada,
fluidos perfis de donas e donzelas.
Tudo em redor é tanta coisa e é nada:
Nise, Anarda, Marília... – quem procuro?
Quem responde a esta póstuma chamada?
Que mensageiro chega, humilde e obscuro?
Que cartas se abrem? Quem reza ou pragueja?
Quem foge? Entre que sombras me aventuro?
Que soube cada santo em cada igreja?
A memória é também pálida e morta
sobre a qual nosso amor saudoso adeja.
O passado não abre a sua porta
e não pode entender a nossa pena.
Mas, nos campos sem fim que o sonho corta,
vejo uma forma no ar subir serena:
vaga forma, do tempo desprendida.
É a mão do Alferes, que de longe acena.
Eloquência da simples despedida:
“Adeus! que trabalhar vou para todos!...”
(Esse adeus estremece a minha vida.)
(MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. 13. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989: 38 - 42)
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