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quinta-feira, 29 de setembro de 2011

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: UM PRÉ-ANUNCIADOR? E AGORA, JOSÉ?


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: UM PRÉ-ANUNCIADOR? “E AGORA, JOSÉ?”

NEUZA MACHADO

Este sempre atualíssimo poema de Carlos Drummond de Andrade, nesses nossos dias de crise monetária mundial, e em relação aos desmoronamentos sócio-políticos que estão a abalar os alicerces das abastadas e presunçosas elites, e levando ao sofrimento e à fome a maior parte da humanidade, poderá ser lido e interpretado com uma certa liberdade pelo leitor consciente. Os leitores-eleitos descobrirão que umas poucas elevadas cabeças – do Brasil e do Mundo –, ricamente orgulhosas de suas posses e poder, irão encaixar-se perfeitamente na “carapuça poético-reflexiva” de nosso genial escritor (uma vez que os verdadeiramente deserdados da sorte monetária estão, neste momento, a léguas de distância das leituras reflexivas).

Carlos Drummond de Andrade publicou este seu poema em meados do século XX (quando o mundo passava pela terrível Segunda Guerra Mundial, quando o Brasil se debatia nas garras violentas da miséria extrema – da maioria de sua população). Naquele momento, éramos todos – nós os brasileiros da segunda metade do século XX – o tristonho “José” desse poema.

E para que o poema de Carlos Drummond de Andrade continue neste século XXI a “incomodar” reflexivamente os atuais leitores brasileiros (principalmente, aqueles que ainda não leram a criação poética do referido escritor), transcrevo-o, com muito prazer (certa de que os Internautas-Leitores que me honram com suas visitas a este meu Blog saberão entender as mensagens que perpassam por suas entrelinhas).

Apreciem também, além da imprescindível leitura reflexiva, o poema “José”, de C. D. de Andrade, musicado e cantado por Paulo Diniz (singularíssimo cantor brasileiro atualmente pouco divulgado).

letras.terra.com.br/carlos-drummond-de-andrade/353799/


JOSÉ

Carlos Drummond de Andrade

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio – e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

domingo, 25 de setembro de 2011

UM DIA DE PRIMAVERA DIFERENTE: UMA MULHER DESPREZADA E O BÚFALO NEGRO DO JARDIM ZOOLÓGICO


UM DIA DE PRIMAVERA DIFERENTE: UMA MULHER DESPREZADA E O BÚFALO NEGRO DO JARDIM ZOOLÓGICO

NEUZA MACHADO

UM CONTO DE CLARICE LISPECTOR:

Era primavera e uma descompassada personagem clariciana, em um Jardim Zoológico de uma insólita cidade qualquer, buscava o sentimento de doentio ódio contra a candura do envolvimento amoroso. E esta busca entrópica foi se desenrolando em meio a sensíveis e primitivas expressões de carinho dos animais. “Mas onde, onde encontrar o animal que lhe ensinasse a ler o seu próprio ódio?”

Foi quando ela avistou o búfalo...


O BÚFALO

Clarice Lispector


Mas era primavera. Até o leão lambeu a testa glabra da leoa. Os dois animais louros. A mulher desviou os olhos da jaula, onde só o cheiro quente lembrava a carnificina que ela viera buscar no Jardim Zoológico. Depois o leão passeou enjubado e tranquilo, e a leoa lentamente reconstituiu sobre as patas estendidas a cabeça de uma esfinge. “Mas isso é amor, é amor de novo”, revoltou-se a mulher tentando encontrar-se com o próprio ódio mas era primavera e dois leões se tinham amado. Com os punhos nos bolsos do casaco, olhou em torno de si, rodeada pelas jaulas, enjaulada pelas jaulas fechadas. Continuou a andar. Os olhos estavam tão concentrados na procura que sua vista às vezes se escurecia num sono, e então ela se refazia como na frescura de uma cova.

Mas a girafa era uma virgem de tranças recém-cortadas. Com tola inocência do que é grande e leve e sem culpa. A mulher do casaco marrom desviou os olhos, doente. Sem conseguir – diante da aérea girafa pousada, diante daquele silencioso pássaro sem asas –, sem conseguir encontrar dentro de si o ponto pior de sua doença, o ponto mais doente, o ponto de ódio, ela que fora ao Jardim Zoológico para adoecer. Mas não diante da girafa que mais era paisagem que um ente. Não diante daquela carne que se distraíra em altura e distância, a girafa quase verde. Procurou outros animais, tentava aprender com eles a odiar. O hipopótamo, o hipopótamo úmido. O rolo roliço de carne, carne redonda e muda esperando outra carne roliça e muda. Não. Pois havia tal amor humilde em se manter apenas carne, tal doce martírio em não saber pensar.

Mas era primavera, e, apertando o punho no bolso do casaco, ela mataria aqueles macacos em levitação pela jaula, macacos felizes como ervas, macacos se entrepulando suaves, a macaca com olhar resignado de amor, e a outra macaca dando de mamar. Ela os mataria com quinze secas balas: os dentes da mulher se apertaram até o maxilar doer. A nudez dos macacos. O mundo que não via perigo em ser nu. Ela mataria a nudez dos macacos. Um macaco também a olhou segurando as grades, os braços descarnados abertos em crucifixo, o peito pelado exposto sem orgulho. Mas não era no peito que ela mataria, era entre os olhos do macaco que ela mataria, era entre aqueles olhos que a olhavam sem pestanejar. De repente a mulher desviou o rosto: é que os olhos do macaco tinham um véu branco gelatinoso cobrindo a pupila, nos olhos a doçura da doença, era um macaco velho – a mulher desviou o rosto, trancando entre os dentes um sentimento que ela não viera buscar, apressou os passos, ainda voltou a cabeça espantada para o macaco de braços abertos: ele continuava a olhar para a frente: “Oh não, não isso”, pensou. E enquanto fugia, disse: “Deus, me ensine somente a odiar.”

“Eu te odeio”, disse ela para um homem cujo crime único era o de não amá-la. “Eu te odeio”, disse muito apressada. Mas não sabia sequer como se fazia. Como cavar na terra até encontrar a água negra, como abrir passagem na terra dura e chegar jamais a si mesma? Andou pelo Jardim Zoológico entre mães e crianças. Mas o elefante suportava o próprio peso. Aquele elefante inteiro a quem fora dado com uma simples pata esmagar. Mas que não esmagava. Aquela potência que no entanto se deixaria docilmente conduzir a um circo, elefante de crianças. E os olhos, numa bondade de velho, presos dentro da grande carne herdada. O elefante oriental. Também a primavera oriental, e tudo nascendo, tudo escorrendo pelo riacho.

A mulher então experimentou o camelo. O camelo em trapos, corcunda, mastigando a si próprio, entregue ao processo de conhecer a comida. Ela se sentiu fraca e cansada, há dois dias mal comia. Os grandes cílios empoeirados do camelo sobre olhos que se tinham dedicado à paciência de um artesanato interno. A paciência, a paciência, a paciência, só isso ela encontrava na primavera ao vento. Lágrimas encheram os olhos da mulher, lágrimas que não correram, presas dentro da paciência de sua carne herdada. Somente o cheiro de poeira do camelo vinha de encontro ao que ela viera: ao ódio seco, não a lágrimas. Aproximou-se das barras do cercado, aspirou o pó daquele tapete velho onde sangue cinzento circulava, procurou a tepidez impura, o prazer percorreu suas costas até o mal-estar, mas não ainda o mal-estar que ela viera buscar. No estômago contraiu-se em cólica de fome a vontade de matar. Mas não o camelo de estopa. “Oh, Deus, quem será meu par neste mundo?”

Então foi sozinha ter a sua violência. No pequeno parque de diversões do Jardim Zoológico esperou meditativa na fila de namorados pela sua vez de se sentar no carro da montanha-russa.

E ali estava agora sentada, quieta no casaco marrom. O banco ainda parado, a maquinaria da montanha-russa ainda parada. Separada de todos no seu banco parecia estar sentada numa igreja. Os olhos baixos viam o chão entre os trilhos. O chão onde simplesmente por amor – amor, amor, não o amor! –, onde por puro amor nasciam entre os trilhos ervas de um verde leve tão tonto que a fez desviar os olhos em suplício de tentação. A brisa arrepiou-lhe os cabelos da nuca, ela estremeceu recusando, em tentação recusando, sempre tão mais fácil amar.

Mas de repente foi aquele vôo de vísceras, aquela parada de um coração que se surpreende no ar, aquele espanto, a fúria vitoriosa com que o banco a precipitava no nada e imediatamente a soerguia como uma boneca de saia levantada, o profundo ressentimento com que ela se tornou mecânica, o corpo automaticamente alegre – o grito das namoradas! –, seu olhar ferido pela grande surpresa, a ofensa, “faziam dela o que queriam”, a grande ofensa – o grito das namoradas! –, a enorme perplexidade de estar espasmodicamente brincando faziam dela o que queriam, de repente sua candura exposta. Quantos minutos? Os minutos a um grito prolongado de trem na curva, e a alegria de um novo mergulho no ar insultando-a com um pontapé, ela dançando descompassada ao vento, dançando apressada, quisesse ou não quisesse o corpo sacudia-se como o de quem ri, aquela sensação de morte às gargalhadas, morte sem aviso de quem não rasgou antes os papéis da gaveta, não a morte dos outros, a sua, sempre a sua. Ela que poderia ter aproveitado o grito dos outros para dar seu urro de lamento, ela se esqueceu, ela só teve espanto.

E agora este silêncio também súbito. Estavam de volta à terra, a maquinaria de novo inteiramente parada.

Pálida, jogada fora de uma igreja, olhou a terra imóvel de onde partira e onde de novo fora entregue. Ajeitou as saias com recato. Não olhava para ninguém. Contrita como no dia em que no meio de todo o mundo tudo o que tinha na bolsa caíra no chão e tudo o que tivera de valor enquanto secreto na bolsa, ao ser exposto na poeira da rua, revelara a mesquinharia de uma vida íntima de precauções: pó-de-arroz, recibo, caneta-tinteiro, ela recolhendo do meio-fio os andaimes de sua vida. Levantou-se do banco estonteada como se estivesse se sacudindo de um atropelamento. Embora ninguém prestasse atenção, alisou de novo a saia, fazia o possível para que não percebessem que estava fraca e difamada, protegia com altivez os ossos quebrados. Mas o céu lhe rodava no estômago vazio; a terra, que subia e descia a seus olhos, ficava por momentos distante, a terra que é sempre tão difícil. Por um momento a mulher quis, num cansaço de choro mudo, estender a mão para a terra difícil: sua mão se estendeu como a de um aleijado pedindo. Mas como se tivesse engolido o vácuo, o coração surpreendido.

Só isso? Só isto. Da violência, só isto.

Recomeçou a andar em direção aos bichos. O quebranto da montanha-russa deixara-a suave. Não conseguiu ir muito adiante: teve que apoiar a testa na grade de uma jaula, exausta, a respiração curta e leve. De dentro da jaula o quati olhou-a. ela o olhou. Nenhuma palavra trocada. Nunca poderia odiar o quati, que no silêncio de um corpo indagante a olhava. Perturbada, desviou os olhos da ingenuidade do quati. O quati curioso lhe fazendo uma pergunta como uma criança pergunta. E ela desviando os olhos, escondendo dele a sua missão mortal. A testa estava tão encostada às grades que por um instante lhe pareceu que ela estava enjaulada e que um quati livre a examinava.

A jaula era sempre do lado onde ela estava: deu um gemido que pareceu vir da sola dos pés. Depois outro gemido.

Então, nascida do ventre, de novo subiu, implorante, em onda vagarosa a vontade de matar – seus olhos molharam-se gratos e negros numa quase felicidade, não era o ódio ainda, por enquanto apenas a vontade atormentada de ódio como um desejo, à promessa do desabrochamento cruel, um tormento como de amor, a vontade de ódio se prometendo sagrado sangue e triunfo, a fêmea rejeitada espiritualizara-se na grande esperança. Mas onde, onde encontrar o animal que lhe ensinasse a ler o seu próprio ódio? O ódio que lhe pertencia por direito mas que em dor ela não alcançava? Onde aprender a odiar para não morrer de amor? E com quem? O mundo de primavera, o mundo das bestas que na primavera se cristianizam em patas que arranham mas não dói... oh não mais esse mundo! não mais esse perfume, não esse arfar cansado, não mais esse perdão em tudo o que um dia vai morrer como se fora para dar-se. Nunca o perdão, se aquela mulher perdoasse mais uma vez, uma só vez que fosse, sua vida estaria perdida – deu um gemido áspero e curto, o quati sobressaltou-se –, enjaulada olhou em torno de si e como não era pessoa em quem prestassem atenção, encolheu-se como uma velha assassina solitária, uma criança passou correndo sem vê-la.

Recomeçou então a andar, agora apequenada, dura, os punhos de novo fortificados nos bolsos, a assassina incógnita, e tudo estava preso no seu peito. No peito que só sabia resignar-se, que só sabia suportar, só sabia pedir perdão, só sabia perdoar, que só aprendera a ter a doçura da infelicidade, e só aprendera a amar, a amar, a amar. Imaginar que talvez nunca experimentasse o ódio de que sempre fora feito o seu perdão, fez seu coração gemer sem pudor, ela começou a andar tão depressa que parecia ter encontrado um súbito destino. Quase corria, os sapatos a desequilibravam, e davam-lhe uma fragilidade de corpo que de novo a reduzia a fêmea de presa, os passos tomaram mecanicamente o desespero implrante dos delicados, ela que não passava de uma delicada. Mas pudesse tirar os sapatos, poderia evitar a alegria de andar descalça? Como não amar o chão em que se pisa? Gemeu de novo, parou diante das barras de um cercado, encostou o rosto quente no enferrujado frio do ferro. De olhos profundamente fechados procurava enterrar a cara entre a dureza das grades, a cara tentava uma passagem impossível entre barras estreitas, assim como antes vira o macaco recém-nascido, buscar na cegueira da fome o peito da macaca. Um conforto passageiro veio-lhe do modo como as grades pareceram odiá-la opondo-lhe a resistência de um ferro gelado.

Abriu os olhos devagar. Os olhos vindo de sua própria escuridão nada viram na desmaiada luz da tarde. Ficou respirando. Aos poucos recomeçou a enxergar, aos poucos as formas foram se solidificando, ela cansada, esmagada pela doçura de um cansaço. Sua cabeça ergueu-se em indagação para as árvores de brotos nascendo, os olhos viram as pequenas nuvens brancas. Sem esperança, ouviu a leveza de um riacho. Abaixou de novo a cabeça e ficou olhando o búfalo ao longe. Dentro de um casaco marrom, respirando sem interesse, ninguém interessado nela, ela não interessada em ninguém.

Certa paz enfim. A brisa mexendo nos cabelos da testa como no de pessoa recém-morta, de testa ainda suada. Olhando com isenção aquele grande terreno seco rodeado de grades altas, o terreno do búfalo. O búfalo negro estava imóvel no fundo do terreno. Depois passeou ao longe com os quadris estreitos, os quadris concentrados. O pescoço mais grosso que as ilhargas contraídas. Visto de frente a grande cabeça mais larga que o corpo impedia a visão do resto do corpo, como uma cabeça decepada. E na cabeça os cornos. De longe ele passeava devagar com seu torso. Era um búfalo negro. Tão preto que, a distância, a cara não tinha traços. Sobre o negror a alvura erguida dos cornos.

A mulher talvez fosse embora mas o silêncio era bom no cair da tarde.

E no silêncio do cercado, os passos vagarosos, a poeira seca sob os cascos secos. De longe, no seu calmo passeio, o búfalo negro olhou-a um instante. No instante seguinte, a mulher de novo viu apenas o duro músculo do corpo. Talvez não a tivesse olhado. Não podia saber, porque das trevas da cabeça ela só distinguia os contornos. Mas de novo ele pareceu tê-la visto ou sentido.

A mulher aprumou um pouco a cabeça, recuou-a ligeiramente em desconfiança. Mantendo o corpo imóvel, a cabeça recuada, ela esperou.

E mais uma vez o búfalo pareceu notá-la.

Como se ela não tivesse suportado sentir o que sentira, desviou subitamente o rosto e olhou uma árvore. Seu coração não bateu no peito, o coração batia oco entre o estômago e os intestinos.

O búfalo deu outra volta lenta. A poeira. A mulher apertou os dentes, o rosto todo doeu um pouco.

O búfalo com o dorso preto. No entardecer luminoso era um corpo enegrecido de tranquila raiva, a mulher suspirou devagar. Uma coisa branca espalhara-se dentro dela, branca como papel, fraca como papel, intensa como uma brancura. A morte zumbia nos seus ouvidos. Novos passos do búfalo trouxeram-na a si mesma e, em novo longo suspiro, ela voltou à tona. Não sabia onde estivera. Estava de pé, muito débil, emergida daquela coisa branca e remota onde estivera.

E de onde olhou de novo o búfalo.

O búfalo agora maior. O búfalo negro. Ah, disse de repente com uma dor. O búfalo de costas para ela, imóvel. O rosto esbranquiçado da mulher não sabia como chamá-lo. Ah!, disse provocando-o. Ah!, disse ela. Seu rosto estava coberto de mortal brancura, o rosto subitamente emagrecido era de pureza e veneração. Ah!, instigou-o com os dentes apertados. Mas de costas para ela, o búfalo inteiramente imóvel.

Apanhou uma pedra no chão e jogou para dentro do cercado. A imobilidade do dorso mais negra ainda se aquietou: a pedra rolou inútil.

Ah!, disse sacudindo as barras. Aquela coisa branca se espalhava dentro dela, viscosa como uma saliva. O búfalo de costas.

Ah, disse. Mas dessa vez porque dentro dela escorria enfim um primeiro fio de sangue negro.

O primeiro instante foi de dor.como se para que ocorresse este sangue se tivesse contraído o mundo. ficou parada, ouvindo pingar como uma grota aquele primeiro óleo amargo, a fêmea desprezada. Sua força ainda estava presa entre barras, mas uma coisa incompreensível e quente, enfim incompreensível, acontecia, uma coisa como uma alegria sentida na boca. Então o búfalo voltou-se para ela.

O búfalo voltou-se, imobilizou-se, e, a distância, encarou-a.

Eu te amo, disse ela então com ódio para o homem cujo grande crime impunível era o de não querê-la. Eu te odeio, disse implorando amor ao búfalo.

Enfim provocado, o grande búfalo aproximou-se sem pressa.

Ele se aproximava, a poeira erguia-se. A mulher esperou de braços pendidos ao longo do casaco. Devagar ele se aproximava. Ela não recuou um só passo. Até que ele chegou às grades e ali parou. Lá estavam o búfalo e a mulher, frente a frente.ela não olhou a cara, nem a boca, nem os cornos. Olhou seus olhos.

E os olhos do búfalo, os olhos olharam seus olhos. E uma palidez tão funda foi trocada que a mulher se entorpeceu dormente. De pé, em sono profundo. Olhos pequenos e vermelhos a olhavam. Os olhos do búfalo. A mulher tonteou surpreendida, lentamente meneava a cabeça. O búfalo calmo. Lentamente a mulher meneava a cabeça, espantada com o ódio com que o búfalo, tranquilo de ódio, a olhava. Quase inocentada, meneando uma cabeça incrédula, a boca entreaberta. Inocente, curiosa, entrando cada vez mais fundo dentro daqueles olhos que sem pressa a fitavam, ingênua, num suspiro de sono, sem querer nem poder fugir, presa ao mútuo assassinato. Presa como se sua mão se tivesse grudado para sempre ao punhal que ela mesma cravara. Presa, enquanto escorregava enfeitiçada ao longo das grades. Em tão lenta vertigem que antes do corpo baquear macio a mulher viu o céu inteiro e um búfalo.

LISPECTOR, Clarice. Laços de Família. 25. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993: 157 - 168.


sábado, 24 de setembro de 2011

CECÍLIA MEIRELES E SEU "ROMANCEIRO" PÓS-MODERNO


CECÍLIA MEIRELES E SEU “ROMANCEIRO” PÓS-MODERNO

NEUZA MACHADO

Cecília Meireles escreveu o seu Romanceiro da Inconfidência com incomum maestria na elaboração dos versos narrativos, à moda épica, acoplados estes a uma especialíssima sentimentalização própria da matéria lírica. Então, fica aqui a pergunta: O Romanceiro de Cecília Meireles adéqua-se ao Gênero Épico ou ao Gênero Lírico?

Enquanto professora de Ciência da Literatura e Crítica Literária, por intervenção de conhecimento teórico adquirido e até agora reelaborado, posso dizer que o extraordinário e longo poema de Cecília Meireles conceitua-se como poema narrativo epo-lírico pós-moderno (ou seja, a forma e fenômenos estilísticos do Gênero Épico já se encontram em suas linhas gerais impregnados de matéria proveniente do Gênero Lírico e das variações sócio-culturais da Era Pós-Moderna). Assim, no caso deste poema, em especial, sobressai-se esteticamente (e visivelmente) a forma de apresentação épica (já conceituada), enquanto que a tensão da matéria lírica (recordação) espraia-se sublinearmente ao longo dos versos narrativos.

Em contrapartida, o que tenciono passar, para os Internautas-Leitores deste meu Blog, é algo totalmente diferenciado de um estudo crítico. Gostaria que os meus leitores soubessem que entre os muitos poemas (épicos ou líricos) que me oferecem sábias reflexões, de conceituados autores diversos, este Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles é um dos que me emocionam para muito além do conhecimento teórico-literário.

Não fui eu que escrevi este magnífico poema, mas, enquanto oriunda do Estado de Minas Gerais, o “cenário” geográfico da epopeia dos inconfidentes, sinto-me como se cada verso tivesse saído das minhas próprias lembranças e recordações de meu passado longínquo. Enquanto os leio, os versos de Cecília são meus (aproprio-me deles), pois eles fazem parte de meu íntimo mineiro-brasileiro.

Para explicar-lhes com mais eficiência este meu digladiar teórico entre razão e emoção, permito-me buscar auxílio nos ensinamentos fenomenológicos de Gaston Bachelard, atemporal filósofo francês:

O verdadeiro fenomenólogo deve ser sistematicamente modesto”.

"O crítico literário é um leitor excessivamente severo. Desenvolve de bom grado um complexo de superioridade”.

Quanto a nós, acostumados à leitura feliz, só lemos, só relemos aquilo que nos agrada, com um pequeno orgulho de leitura mesclado de muito entusiasmo”.

Está em nós, simples leitores, para nós, e só para nós. É um orgulho crivado. Ninguém sabe que na leitura revivemos nossas tentações de poeta. Todo leitor um pouco apaixonado pela leitura alimenta e recalca, pela leitura, um desejo de ser escritor.”

Quando a página lida é demasiadamente bela, a modéstia recalca esse desejo. Mas ele renasce. Seja como for, todo leitor que relê uma obra que ama, sabe que as páginas amadas lhe dizem respeito”.

(BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. Trad. de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2005:10)

É exatamente isto que desejo expressar aos meus leitores blogueiros: “todo leitor que relê uma obra que ama, sabe que as páginas amadas lhe dizem respeito”. As páginas do Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles muito de perto me “dizem respeito”.

Como não há possibilidade de transcrever aqui o poema inteiro (mais de duzentas páginas), ofereço hoje aos meus leitores o belíssimo Segundo Canto do ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA - denominado “CENÁRIO” - de nossa poetisa maior Cecília Meireles:


CENÁRIO

Cecília Meireles


Passei por essas plácidas colinas
e vi das nuvens, silencioso, o gado,
pascer nas solidões esmeraldinas.

Largos rios de corpo sossegado
dormiam sobre a tarde, imensamente,
e eram sonhos sem fim, de cada lado.

Entre nuvens, colinas e torrente,
uma angústia de amor estremecia
a deserta amplidão na minha frente.

Que vento, que cavalo, que bravia
saudade me arrastava a esse deserto,
me obrigava a adorar o que sofria?

Passei por entre as grotas negras, perto
dos arroios fanados, do cascalho
cujo ouro já foi todo descoberto.

As mesmas salas deram-me agasalho
onde a face brilhou de homens antigos,
iluminada por aflito orvalho.

De coração votado a iguais perigos,
vivendo as mesmas dores e esperanças,
a voz ouvi de amigos e inimigos.

Vencendo o tempo, fértil em mudanças,
conversei com doçura as mesmas fontes,
e vi serem comuns nossas lembranças.

Da brenha tenebrosa aos curvos montes,
do quebrado almocafre aos anjos de ouro
que o céu sustem nos longos horizontes.

tudo me fala e entende do tesouro
arrancado a estas Minas enganosas,
com sangue sobre a espada, a cruz e o louro.

Tudo me fala e entendo: escuto as rosas
e os girassóis destes jardins, que um dia
foram terras e areia dolorosas,

por onde o passo da ambição rugia;
por onde se arrastava, esquartejado,
o mártir sem direito de agonia.

Escuto os alicerces que o passado
tingiu de incêndio: a voz dessas ruínas
de muros de ouro em fogo evaporado.

Altas capelas contam-me divinas
fábulas. Torres, santos e cruzeiros
apontam-me atitudes e neblinas.

Ó pontes sobre os córregos! ó vasta
desolação de ermas, estéreis serras
que o sol frequenta e a ventania gasta!

Rubras, cinéreas, tenebrosas terras
retalhadas por grandes golpes duros,
de infatigáveis, seculares guerras...

Tudo me chama: a porta, a escada, os muros,
as lajes sobre mortos ainda vivos,
dos seus próprios assuntos inseguros.

Assim viveram chefes e cativos,
um dia, neste campo, entrelaçados
na mesma dor, quiméricos e altivos.

E assim me acenam por todos os lados.
Porque a voz que tiveram ficou presa
na sentença dos homens e dos fados.

Cemitério das almas... – que tristeza
nutre as papoulas de tão vaga essência?
(Tudo é sombra de sombras, com certeza...

O mundo, vaga e inábil aparência,
que se perde nas lápides escritas,
sem qualquer consistência ou consequência.

Vão-se as datas e as letras eruditas
na pedra e na alma, sob etéreos ventos,
em lúcidas aventuras e desditas.

E são todas as coisas uns momentos
de perdulária fantasmagoria,
– jogo de fugas e aparecimentos.)

Das grotas de ouro à extrema escadaria,
por asas de memória e de saudade,
com o pó do chão meu sonho confundia.

Armado pó que finge eternidade,
lavra imagens de santos e profetas
cuja voz silenciosa nos persuade.

E recompunha as coisas incompletas:
figuras inocentes, vis, atrozes,
vigários, coronéis, ministros, poetas.

Retrocedem os tempos tão velozes,
que ultramarinos árcades pastores
falam de Ninfas e Metamorfoses.

E percebo os suspiros dos amores
quando por esses prados florescentes
se ergueram duros punhos agressores.

Aqui tiniram ferros de correntes;
pisaram por ali tristes cavalos.
E enamorados olhos refulgentes

– parado o coração por escutá-los –
prantearam nesse pânico de auroras
densas de brumas e gementes galos.

Isabéis, Dorotéias, Eliodoras,
ao longo desses vales, desses rios,
viram as suas mais douradas horas

em vasto furacão de desvarios
vacilar como em caules de altas velas
cálida luz de trêmulos pavios.

Minha sorte se inclina junto àquelas
vagas sombras da triste madrugada,
fluidos perfis de donas e donzelas.

Tudo em redor é tanta coisa e é nada:
Nise, Anarda, Marília... – quem procuro?
Quem responde a esta póstuma chamada?

Que mensageiro chega, humilde e obscuro?
Que cartas se abrem? Quem reza ou pragueja?
Quem foge? Entre que sombras me aventuro?

Que soube cada santo em cada igreja?
A memória é também pálida e morta
sobre a qual nosso amor saudoso adeja.

O passado não abre a sua porta
e não pode entender a nossa pena.
Mas, nos campos sem fim que o sonho corta,

vejo uma forma no ar subir serena:
vaga forma, do tempo desprendida.
É a mão do Alferes, que de longe acena.

Eloquência da simples despedida:
“Adeus! que trabalhar vou para todos!...”
(Esse adeus estremece a minha vida.)

(MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. 13. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989: 38 - 42)

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

PRIMAVERA DE 2011: UMA DECLARAÇÃO DE AMOR AO BRASIL


PRIMAVERA DE 2011: UMA DECLARAÇÃO DE AMOR AO BRASIL

NEUZA MACHADO



No intuito de não esquecer que a Primavera é a Estação Climática própria para o expressar de lindas declarações de amor, desejo reafirmar, aqui, neste meu Bloguinho, por intermédio da poderosíssima voz de nosso inesquecível intérprete Tim Maia, o meu Grande Amor pelo Brasil (a minha Terra que muito venero, o meu incomparável Chão acolhedor):

Quando o inevitável e veiroto inverno chegar, meu Amado e Idolatrado Brasil!, eu quero ainda estar por aqui!... junto a ti!...


PRIMAVERA

Tim Maia
letras.terra.com.br/tim-maia/48934/



Quando o inverno chegar
Eu quero estar junto a ti
Pode o outono voltar
Eu quero estar junto a ti

Porque (é primavera)
Te amo (é primavera)
Te amo, meu amor
Trago esta rosa (para te dar)

Trago esta rosa
(para te dar)
Trago esta rosa
(para te dar)

Meu amor...
Hoje o céu está tão lindo
(sai chuva)
Hoje o céu está tão lindo
(sai chuva)

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

SALVE O DIA DA ÁRVORE!


SALVE O DIA DA ÁRVORE!

NEUZA MACHADO

21 de setembro: Dia da Árvore.

Às novíssimas árvores que estão nascendo no Brasil, envio, repleta de alegria, um glorioso Salve! Salve!

E para não esquecer as lições de Olavo Bilac, Príncipe dos Parnasianos Poetas do Brasil do Final do Século XIX, apreciem o que ele escreveu sobre o assunto neste belo soneto em homenagem às velhas árvores:




VELHAS ÁRVORES

Olavo Bilac


Olha estas velhas árvores, mais belas
Do que as árvores moças, mais amigas,
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas...

O homem, a fera e o inseto, à sombra delas
Vivem, livres da fome e de fadigas:
E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E os amores das aves tagarelas.

Não choremos, amigo, a mocidade!
Envelheçamos rindo. Envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem,

Na glória de alegria e da bondade,
Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!

P. S.: Agradecimentos sinceros aos amigos – aos conhecidos e aos não-conhecidos Internautas – que me honram sempre com suas visitas aos meus bloguinhos. Comemorando este Dia da Árvore – a Grande Protectora de nossos indefesos pulmões –, envio-lhes o meu cordial abraço.


terça-feira, 13 de setembro de 2011

MISS UNIVERSO 2011 – LEILA LOPES – ANGOLA


MISS UNIVERSO 2011 – LEILA LOPES – ANGOLA

NEUZA MACHADO

Envio os meus parabéns à Leila Lopes, Miss Angola e Miss Universo de 2011. Sua vitória foi merecida! Estendo também as minhas felicitações ao povo angolano que foi tão bem representado, neste certame, pela sua inegável beleza e radiante alegria. Quero que saiba que muito torci por sua vitória. E, para a minha particular satisfação, pela primeira vez, percebi sinceridade e liberdade de escolha nos jurados de um concurso de Miss.



PARABÉNS LEILA LOPES, MISS ANGOLA 2011!


PARABÉNS LEILA LOPES, MISS UNIVERSO 2011!

PARABÉNS ANGOLA!

PARABÉNS CONTINENTE AFRICANO!

domingo, 11 de setembro de 2011

“ONDE VOCÊ ESTAVA EM 11 DE SETEMBRO DE 2001?”


“ONDE VOCÊ ESTAVA EM 11 DE SETEMBRO DE 2001?”

NEUZA MACHADO

Naquela terça-feira (11/09/2001), meus alunos e eu estávamos no Laboratório de Informática do Campus Barra da Tijuca da Universidade Castelo Branco. Eu havia reservado a sala de computação para explicar aos meus alunos de Teoria da Literatura as normas técnicas de um formato-padrão para a elaboração de monografias. Naquele momento, meus alunos de Letras estavam compenetrados na preparação de seus trabalhos dissertativos de final de curso.

Vale lembrar que eu, à época, enquanto professora de graduação em Letras, estava me familiarizando com a nova linguagem do Windows XP 2000, procurando interagir autodidaticamente com a referida linguagem. Os meus alunos daquele curso pouco sabiam a respeito de informática. A cada impasse, eu e os alunos pedíamos o auxílio de um funcionário ligado ao Curso de Computação da Universidade. Ressalvo que o conhecimento do uso da linguagem de informática, de um modo geral, naquele momento, especialmente aqui no Brasil, era mais comum nas instituições de nível superior e nas empresas públicas e privadas.

Não será demais lembrar que, naquele ano de 2001, a conquista da nova tecnologia e o acesso à Internet eram tão custosos, que o uso doméstico do computador não alcançava a maioria das famílias. O sonho de possuir a nova tecnologia sequer passava pela cabeça da maior parte da população brasileira.

Mas, voltando ao assunto do 11 de setembro de 2001, uma aluna pesquisava na Internet dados para a sua monografia (não me lembro bem de seu nome, mas penso que se chamava Sônia), quando a mesma, por volta das 10 horas e 15 minutos aproximadamente - horário de Brasília -, gritou anunciando a queda da primeira torre do World Trade Center: “- Geeente! Meu Deus do Céu! Um avião colidiu neste exato momento com uma das torres gêmeas do World Trade Center. Meu Deus! O prédio está desmoronando! Todos os que estão lá não vão escapar da morte! Meu Jesus! Meu Deus!” As palavras de minha aluna e aquele acontecimento inacreditável foram tão marcantes que até hoje estão nítidos em minha memória.

Ante as exclamações e invocações angustiadas de minha aluna, a aula terminou abruptamente e todos nós passamos a acompanhar o desenrolar da trágica destruição das torres. Logo em seguida, um outro avião atingiu a segunda torre. Foi quando nos conscientizamos que não se tratava de uma ocorrência acidental aérea, mas, desditosamente, de um atentado terrorista.

Aqui no Brasil, em uma terça-feira, 11 de setembro de 2001, hipnotizados, diante de vários computadores, ícones da Nova Era, impotentes diante daquela visão apocalíptica, distantes geograficamente do local da tragédia, repletos de angustiante tensão, meus alunos e eu - por intermédio da Internet - fomos testemunhas oculares de um fato histórico.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

sábado, 3 de setembro de 2011

LITERATURA COMPARADA: "EDIPO-REI", DE SÓFOCLES x "ANTÓNIO MARINHEIRO, O ÉDIPO DE ALFAMA" DE BERNARDO SANTARENO


LITERATURA COMPARADA: “ÉDIPO-REI” DE SÓFOCLES x “ANTÓNIO MARINHEIRO, O ÉDIPO DE ALFAMA” DE BERNARDO SANTARENO

NEUZA MACHADO

"Quando se destrói a razão de uma existência humana, quando uma causa final e única cessa de existir, nasce o trágico. Dito de outro modo, há no trágico a explosão do mundo de um homem, de um povo, ou de uma classe”. (STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais de Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969: 147)

Para um estudo comparativo entre a forma da tragédia grega e a forma da dramaturgia moderna do século XX, passo a exemplificar com o Édipo-Rei, de Sófocles (tragediógrafo grego) em confronto com o António Marinheiro: O Édipo de Alfama, de Bernardo Santareno (teatrólogo português dos anos 50/60, já falecido).

Em primeiro lugar, há a necessidade de explicar que a forma literária da tragédia grega não sofreu continuidade através do tempo. A forma da poesia trágica à moda antiga (com todas as características textuais e de palco daquela época) ficou no passado, restrita às obras dos trágicos gregos. Com o passar do tempo, novas formas foram criadas, o texto em prosa para o teatro substituiu o texto em versos, a presença do coro na escrita teatral não existe mais, a idéia de Destino comandando as ações do homem (herói trágico) foi abandonada pelos dramaturgos (graças a desvitalização do mito e a ascendência do cristianismo) e substituída pela idéia moderna do livre-arbítrio e da luta contra o ônus da culpa difundido pela Igreja Romana nos anos iniciais da Era Moderna. Neste princípio de século XXI, os textos teatrais que impõem forte carga emocional estão longe da forma conhecida na Antiguidade Clássica. As tragédias, desde o início do século XX (um século de guerras mundiais e inúmeras guerrilhas particulares), transformaram-se em ocorrências do cotidiano, passaram a fazer parte da realidade objetiva, estão estampadas nos jornais e em outros meios de comunicação, como a televisão e a Internet. Os acontecimentos trágicos, tão significantes nos palcos antigos, foram substituídos, nos palcos de hoje, pelos chamados dramas modernos, os quais seguem os ditames da realidade objetiva do nosso caótico momento histórico.

Quanto a uma comparação entre tragédia grega e drama moderno, na peça trágica, Édipo-Rei, o trágico se instaura a partir da terrível revelação, revelação esta que confirmou os presságios do oráculo, ou seja, a partir do momento em que Édipo e Jocasta descobrem que são, na verdade, filho e mãe vivendo uma relação incestuosa. Comparando a minha exemplificação com as palavras de Staiger, posso dizer que o mundo dos dois explodiu ao tomarem conhecimento da dura realidade. Esse trágico acontecimento estendeu-se também ao povo, pois afinal os dois eram os reis desse povo.

Algo parecido acontece na peça António Marinheiro, o Édipo de Alfama, de Bernardo Santareno. Depois de uma briga, em uma taberna de Alfama, um bairro de pescadores da cidade de Lisboa, em Portugal, o jovem António Marinheiro, ali embriagando-se, em um intervalo de suas obrigações como marinheiro de um navio mercante, no auge de uma briga mata um velho pescador, morador do local. Durante o inquérito, ao se deparar com a viúva do pescador, sente por ela uma irresistível atração, e é também correspondido. Ao final da peça, ambos descobrem que são na verdade filho e mãe, e que António Marinheiro havia assassinado o próprio pai. À semelhança do Édipo de Sófocles, o António (nascido no dia de Santo Antônio, abandonado em um barco pela avó Bernarda e, no mesmo dia, achado por marinheiros que o criaram e a ele deram o nome e sobrenome de António Marinheiro) volta à sua terra natal, já adulto, e é exatamente ali que se vão desenrolar os acontecimentos dramáticos, os quais guiarão o enredo teatral do século XX, mas, com um final diferente submetido às leis do livre-arbítrio (ao contrário do Édipo, pois este submeteu-se às leis do Destino, leis severas que regiam as ações humanas na Antiguidade Clássica).

Comparando as duas peças (a antiga e a pós-moderna/segunda metade do século XX) pelo ponto de vista de Staiger, posso dizer que, além das semelhanças, há diferenças marcantes: enquanto no texto trágico de Sófocles observa-se um mundo voltado para a riqueza, o cenário, onde se desenrola o amor entre António e Amália, é de ostensiva pobreza. Mesmo assim a matéria trágica se instaura, pois, com a descoberta, o amor entre os dois sofre um tremendo abalo e, consequentemente, acontece o rompimento, uma saída natural para o conflito. Assim, para o espectador do século XX, mais dramático do que a morte de Jocasta e do sacrifício de Édipo furando os olhos (no texto de Sófocles), é o abandono de António e o desespero de Amália, chamando pelo amante e não pelo filho.

No texto de Bernardo Santareno, o momento da revelação é o momento crucial, o clímax, uma vez que Amália não aceita o fato de ser mãe do rapaz. Este é o momento trágico pós-moderno. O que vem a seguir (o abandono de António, o desespero de Amália) seria então uma espécie de situação-limite, impelindo os personagens centrais para uma provável purificação (isto, se olharmos a mimese do texto pelo ponto de vista antigo). No caso de Édipo e Jocasta, o Destino à moda pagã (com D maiúsculo) impunha essas atitudes, uma vez que tais impulsos faziam parte do modo grego de solucionar os problemas humanos. No António Marinheiro (recriação teatral do tema do Édipo, início da pós-modernidade – meados do século XX), os personagens centrais já não possuem aquela ideia de destino nos moldes antigos, e, assim, optam pelo livre-arbítrio (fenômeno da Era Moderna, ainda atuando neste início de pós-modernidade): o António parte, retomando a vida de marinheiro e Amália fica a gritar, chorando e chamando pelo marido, jamais pelo filho, pois ela não se sentia culpada, uma vez que fora enganada pela mãe. Esta, a Bernarda, à época do nascimento de Antônio, lhe contara uma história falsa, dizendo-lhe que a criança era uma menina, que havia falecido durante o parto, quando na verdade era um menino, abandonado por ela, a avó, em um barco de pescadores (ler os motivos para o abandono da criança em: SANTARENO, Bernardo. António Marinheiro: O Édipo de Alfama).

"Nem toda desgraça é trágica, mas apenas aquela que rouba do homem seu pouso, sua meta final, de modo que ele passa a cambalear e fica fora de si." (Emil Staiger. Conceitos Fundamentais de Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969: 148)

Utilizando-me de outras palavras, o trágico seria aquele momento em que o homem sente o seu mundo desmoronar e fica fora de si. No caso de “Édipo-Rei”, o personagem trágico ficou sem ação, seu futuro sofreu um abalo, e ele se mutilou, depois do suicídio de Jocasta. Na peça pós-moderna de Bernardo Santareno, o António Marinheiro preferiu fugir ao invés de enfrentar com heroísmo a fúria do povo de Alfama, enquanto que Amália ficou em casa, chorando e gritando por seu amor, à mercê do povo que a acusava, sem avaliar a sua inocência diante do ocorrido.

"Para que o trágico cause efeito e espalhe sua força fatal, deverá atingir um homem que viva coerente com sua idéia e não vacile um momento sobre a validez desta idéia". (Emil Staiger. Conceitos Fundamentais de Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969: 149)

Neste aspecto reside a grande diferença entre a verdadeira forma da tragédia grega (centrada no Destino, deus da mitologia antiga) e a forma da dramaturgia moderna do livre-arbítrio. O Édipo possui uma profunda firmeza de pensamento e jamais renegaria suas próprias atitudes. Por este ponto de vista, a peça de Bernardo Santareno não poderá ser avaliada como uma peça trágica, ela, na verdade, se adéqua ao que chamamos de drama moderno. O caráter de Antônio Marinheiro, ao longo das peripécias dramáticas, não é assim tão firme. Há inclusive uma leve insinuação de homossexualismo entre ele e Rui, um outro personagem, amigo e companheiro de aventuras marítimas (atentar para os ciúmes de Rui, personagem representativo do oráculo moderno). E ele vacila diante do tumulto, abandonando Amália à própria sorte, à sorte desgovernada da realidade do século XX.

"O trágico surpreende o herói dramático inesperadamente". (Emil Staiger. Conceitos Fundamentais de Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969: 149)

Aqui há semelhanças: O herói trágico (ou mesmo o personagem da dramaturgia do século XX) não se encontra preparado para enfrentar as tragédias que virão. Isto, porque ele se preocupa mais com um determinado problema (no caso de António Marinheiro, como enfrentar a fúria dos moradores de Alfama?), ou um determinado deus (no caso de Édipo, o deus Destino comanda as suas ações), ou uma determinada ideia, e não vê mais nada a não ser o que está em sua mente. Quando o momento trágico se instaura, pega o herói antigo desprevenido (ou o personagem pós-moderno).

Repensando as semelhanças e diferenças entre os dois textos (o antigo e o pós-moderno), adianto que, apesar da influência de Sófocles em Bernardo Santareno, o texto da peça teatral portuguesa possui qualidade artístico-dramática indiscutível. Não poderá em hipótese alguma ser considerado uma mera repetição de um texto clássico de altíssimo nível, como é o texto de Sófocles. Assim como a leitura do Édipo exigiu reflexões teóricas de gerações e gerações de leitores (não estou a referir-me a espectadores, este é um outro assunto) até ao nosso momento, o António Marinheiro também exigirá que seus futuros leitores façam profundas reflexões sobre a problemática existencial do homem do século XX (não apenas do homem português).


(Texto registrado de Neuza Machado. Este texto pertence aos Apontamentos de Teoria Literária e Crítica Literária, um livro que está sendo elaborado pela autora e que será publicado em breve por sua editora particular, NMachado, editora da autora registrada no ISBN – Rio de Janeiro
).

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

GUIMARÃES ROSA: UMA "TERCEIRA MARGEM" PARA SER REPENSADA


GUIMARÃES ROSA: UMA "TERCEIRA MARGEM" PARA SER REPENSADA

NEUZA MACHADO

Aos meus Amigos Internautas, peço-lhes alguns minutos de calmaria, em seus desassossegados compromissos diários, para que possam percorrer reflexivamente o incomum itinerário de uma insólita “terceira margem” que se localiza para além de nossas certezas de todos os dias.








A TERCEIRA MARGEM DO RIO

João Guimarães Rosa


Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente – minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.

Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a ideia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.

Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: – “Ce vai, ocê fique, você nunca volte!” Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: – “Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?” Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo – a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.

Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doidera. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas – passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda – descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s’embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.

No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a ideia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só não encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.

Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.

A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele aguentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos – sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo – de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.

Mina irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.

Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: – “Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim...”; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia do rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.

Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei – na vagação, no rio no ermo – sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.

Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio – pondo perpétuo. Eu sofria já o começo da velhice – esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por que? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranquilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse – se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.

Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: – “Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...” E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.

Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n’água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto – o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte do além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também, numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro ― o rio.

(ROSA, João Guimarães. “A Terceira Margem do Rio”. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988: 32)


VOCABULÁRIO:

Estúrdio – Esquisito, incomum.
Vinhático – Árvore da família das leguminosas, com madeira de cor amarelada.
Encalcou – Comprimiu.
Matula – farnel (comida).
Cordura – concordado; de acordo; cordato.
Assentaram – Ajuizaram; combinaram.
Diluso – Diluído; dissolvido.
Não pojava – Não saía da canoa.
Esconso – Declive; canto (lugar); oculto; lugar escondido.
Malsinar – Agourar; prever infelicidade.
Bubuiasse – Bubuiar = Manter-se à tona; flutuar; boiar
Despenhar – Precipitar-se de grande altura (penha = rocha altíssima)
Tororoma – Corrente fluvial impetuosa e barulhenta.