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quarta-feira, 25 de março de 2009

SERTÃO: CASA DA INFÂNCIA

NEUZA MACHADO

A “Poética da casa” de Gaston Bachelard [A poética do espaço] reporta-se interativamente ao sertão da narrativa A hora e vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. O sertão roseano como a casa inesquecível, com seus recantos secretos, seus refúgios e abrigos.

O artista de origem sertaneja, narrando as aventuras de Augusto Esteves das Pindaíbas e do Saco-de-Embira, recorda (matéria lírica no espaço da ficção) o sertão da infância, seu passado inesquecível, seus fundamentais primeiros anos de vida.

Investigando apenas os trechos que reproduzem o estado anímico do ficcionista — trechos de alto conteúdo lírico —, verifica-se que se encontram além da objetividade histórica. Recordando o sertão, traz à memória a casa da infância, e é por isto que, em um determinado trecho narrativo, se liberta do jugo do narrador experiente (cf.: Walter Benjamim), para “apresentar” liricamente os pormenores da viagem de retorno do personagem Augusto Matraga ao Arraial do Murici.

Mudanças ocorrem no discurso do narrador, graças a esta interferência da matéria lírica. Estas mudanças discursivas representam um momento de transição: o narrador roseano abandonando o cogito(1), sintagmático (vide as narrativas de Sagarana, excetuando, evidentemente, “A hora e vez de Augusto Matraga”), passa a comandar seu processo de ascendência para os cogitos superiores da consciência argumentativa (vide Grande Sertão: Veredas). O narrador — alter ego do ficcionista — se deixa contagiar pelas minúcias do espaço externo do sertão recolhidas em seu íntimo. Recolhe os fragmentos de suas lembranças — suas recordações infanto-juvenis — transformando-as em acontecimentos narrativos. Há uma superabundância de pensamentos que se entrechocam e se ajustam, mas o discurso retórico — característica do literário — impõe suas diretrizes.

De repente, na altura, a manhã gargalhou: um bando de maitacas passava, tinindo guizos, partindo vidros, estralejando de rir. E outro. Mais outro. E ainda outro, mais abaixo, com as maitacas verdinhas, grulhantes, incapazes de acertarem as vozes na disciplina de um corpo.(...) E agora os periquitos, os periquitinhos de guinchos timpânicos, uma esquadrilha, sobrevoando... E mesmo, de vez em quando, discutindo, brigando, um casal de papagaios ciumentos. Todos tinham muita pressa: os únicos que interromperam, por momentos, a viagem, foram os alegres tuins, os minúsculos tuins de cabecinhas amarelas, que não levam nada a sério, e que choveram nos pés de mamão e fizeram recreio, aos pares, sem sustentar o alarido – rrrl, rrrl! rrrl-rrril!...

Os estranhamentos em nível de discurso textual: os fonemas r, i, l agrupados de forma a caracterizarem o alarido dos tuins. Por que a manhã gargalhou com a revoada de pássaros?

Mas o que não se interrompia era o trânsito das gárrulas maitacas. Um bando grazinava alto, risonho, para o que ia na frente: — Me espera!... Me espera!... — E o grito tremia e ficava nos ares, para o outro escalão, que avançava lá atrás.

Os estranhamentos, em nível de discurso textual, aparecem sob novas formas de expressão, registrando as transformações sofridas pelo Narrador e pelo Narrado. Estes se encontram sob as exigências do mágico mundo ficcional, mas todas as contribuições poéticas são bem-vindas. A mimésis ficcional (diferente da mimésis dramática) se sobressai apenas no texto visível. Nhô Augusto é um simples receptor das variações mentais do narrador. Agora, o discurso está repleto de matéria poética: metáforas, antíteses e estranhamentos. Agora, o narrador faz seu personagem cantar velhas cantigas e se encantar com a natureza.

E Nhô Augusto pegou a cantar a cantiga, muito velha, do capiau exilado: “Eu quero ver a moreninha tabaroa, arregaçada, enchendo o pote na lagoa...” Cantou, longo tempo. Até que todas as asas saíssem do céu.

“Asas” conotando “pássaros”. “Asas” apresentando a visualização da grandiosidade do espetáculo do bando de maitacas, maracanãs e tuins voando em direção ao sul, em períodos cíclicos.

Depois que os pássaros passam, Nhô Augusto raciocina: “Não passam mais... Ô papagaiada vagabunda! Já devem de estar longe daqui...” Logo a seguir, observa-se a perplexidade do próprio narrador, interrogando a realidade do texto: “Longe, onde?”, se não há distâncias geográficas no mundo ficcional. Estes estranhamentos explicam o insólito da narrativa, apreendido apenas na camada visível do texto. As recordações da infância permitem esta instabilidade — intercalação de versos sertanejos — através do ato de cantar do personagem.

Como corisca, como ronca a trovoada, no meu sertão, na minha terra abençoada...

O narrador apresentara, antes, um bonito dia ensolarado. Novamente, interrogando a realidade do texto, demonstra aos leitores (ou ouvintes) a sua perplexidade diante de uma descoberta que se delineia subjetivamente, ainda incubada: “Longe, onde?” Intercala outros versos, efetivando um discurso insólito.

Quero ir namorar com as pequenas, com as morenas do Norte de Minas...

Como desejar namorar as morenas do Norte de Minas, se ele, Nhô Augusto, já se encontra no Norte? “Longe, onde?”.

“Norte” simbolizando o mundo ficcional. No literário-arte não há fronteiras histórico-substanciais (“Longe, onde?”), não há distâncias temporais, não há imposições lingüísticas, não impera a lógica da razão. “Longe, onde?”, então, se tudo é possível no mundo de um deus-que-garante-tudo.

É o passado inesquecível do ficcionista que se sobressai, quando o narrador do século XX se descontrola (cf. Walter Benjamim) ao narrar os acontecimentos que pautam a volta de Nhô Augusto. A volta do personagem representa o retorno das recordações da infância e adolescência, a recuperação das imagens da antiga morada. Por isto, o tom poético, o discurso estranho, diferente, que se verifica a partir da decisão do personagem de retornar ao Arraial do Murici.

O narrador informa que seu personagem não percebia os rumos que tomava; o narrador também não percebe os rumos que a narrativa toma. Por meio de contribuição filosófica bachelardiana, há como compreender o impasse ficcional: a casa — o sertão — faz o narrador “devanear”, faz seu personagem poetizar. Sertão inesquecível. O narrador moderno — inserido na sociedade capitalista — não conseguiu esquecer o castelo que permaneceu vívido em suas lembranças. Valores verdadeiros de um passado revigorado no imaginário-em-aberto. Não são os valores objetivos que contam; contam mais as sensações que permanecem no íntimo do ficcionista. Narrador-Poeta ou Poeta-Narrador ou, simplesmente, Poeta? Os Poetas não delegam poderes, apenas sentem, recordam (novamente ao coração), devaneiam; não transitam entre dois mundos diferentes.

Bachelard cita Jung em sua Introdução (A poética do espaço):

Temos que descobrir uma construção e explicá-la: seu andar superior foi construído no século XIX, o térreo data do século XVI e o exame mais minucioso da construção mostra que ela foi feita sobre uma torre do século II. No porão descobriram fundações romanas e, debaixo do porão, acha-se uma caverna em cujo solo se descobrem ferramentas de sílex, na camada superior, e restos de fauna glaciária nas camadas mais profundas. Tal seria mais ou menos a estrutura de nossa alma.

O sertão ficcional de Guimarães Rosa se encontra nas bases da estrutura de vida do narrador, extensivo, portanto, às bases de estrutura de vida do próprio ficcionista. O andar superior foi construído no século XX — narrador moderno —; o térreo — ligado ao sertão mineiro — denuncia os séculos iniciais da História do Brasil ancorados no sertão; mas se observado ponderadamente, verifica-se que esse sertão tem seu alicerce cravado na Era Medieval. Observando as camadas mais profundas, chega-se a uma origem sueva, localizada numa fase pré-medieval de Portugal, num tronco familiar bárbaro, cujo apelido (sobrenome) de família era Guimaranes.

Observe-se o depoimento de Guimarães Rosa ao crítico alemão Günter Lorenz (Entrevista a Günter Lorenz - 1965):

Para sermos exatos, devo dizer-lhe que nasci em Cordisburgo, uma cidadezinha não muito interessante, mas para mim, sim, de muita importância. Além disso, em Minas Gerais: sou mineiro. E isto sim é o importante, pois quando escrevo, sempre me sinto transportado para esse mundo: Cordisburgo. Não acha que soa como algo muito distante? Sabe também que uma parte de minha família é, pelo sobrenome, de origem portuguesa, mas na realidade é um sobrenome suevo que na época das migrações era Guimaranes, nome que também designava a capital de um estado suevo na Lusitânia? Portanto, pela minha origem, estou voltado para o remoto, o estranho. Você certamente conhece a história dos suevos. Foi um povo que, como os celtas, emigrou para todos os lugares sem poder lançar raízes em nenhum. Este destino, que foi tão intensamente transmitido a Portugal, talvez tenha sido o culpado por meus antepassados se pegarem com tanto desespero àquele pedaço de terra que se chama o sertão. E eu também estou apegado a ele.

O sertão é a casa do narrador e do Ficcionista. Dentro da casa íntima de cada sertanejo há um sertão que não se esquece. A literatura de Guimarães Rosa nasceu de sua vida inicial, sua literatura só sabe recordar o sertão. A memória (matéria épica) é insuficiente para transmitir sentimentos que remontam a pré-fase da alma humana inserida na alma de um único homem. Não se objetiva aqui avaliar o fenômeno pela ótica psicológica, mas reconhecer que a primeira morada é a base das futuras recordações. As primeiras lembranças, mesmo que aparentemente esquecidas, permanecem alojadas, armazenadas em íntimos compartimentos. O espaço interior desse sertão — sua intimidade — é captado através (no mais puro sentido etimológico da palavra “atravessar”) do olhar nostálgico do ficcionista (atenção: narrador X ficcionista). Se a narrativa, nas últimas seqüências, se processa por meio de um discurso diferente do comumente usado para reproduzir a realidade, isto se apresenta graças à complexidade de se lembrar — recordar — de quem narra. A recordação é caótica e, pelo prisma da criação, valiosa; por isto, as imagens se encontram dispersas (cf. Bachelard), e, ao mesmo tempo, há um corpo de imagens.

Seguindo ainda as teorizações de Bachelard, verifica-se que esse acúmulo de imagens (ou imaginação além dos limites) aumenta os valores da verdadeira realidade do sertão mineiro (no sentido material). O sertão foi a primeira morada do escritor, o sertão roseano concentra as imagens dessa casa. No sertão da infância, ele foi um ser protegido, antes de tomar para si as rédeas de seu próprio destino. Foi ali que conheceu o calor do fogão-de-lenha e o calor do afeto familiar. Depois, o mundo o envolveu.

Bachelard diz: “a casa é o nosso canto do mundo”. O escritor adquiriu inúmeros talentos, projetou-se socialmente e intelectualmente, transformou-se em cidadão do mundo, mas o sertão permaneceu como seu “canto do mundo “ no mundo.

Eu sou antes de mais nada um “homem do sertão”; e isto não é apenas uma afirmação biográfica, mas também, e nisto pelo menos eu acredito firmemente, que ele, esse “homem do sertão”, está presente como ponto de partida mais que qualquer outra coisa. (...) Este pequeno mundo do sertão, este mundo original e cheio de contrastes, é para mim o símbolo, diria mesmo o modelo de um universo. (Entrevista ao crítico Günter Lorenz)

O sertão foi seu primeiro e verdadeiro universo, e o que veio depois não o satisfez realmente. Não se encontra satisfação particular em um mundo refletor de hipocrisias, e o mundo moderno, mundo que circunda o sertão roseano sem afetá-lo inteiramente, espelhou a degradação do homem do século XX, distante temporalmente dos valores irretocáveis da Antigüidade. O narrador de A hora e vez de Augusto Matraga traslada-se, em sua narrativa, ao “país da infância imóvel” (cf. Bachelard), de onde resgata, por meio da nostalgia, os tesouros de um espaço verdadeiro, pois suas lembranças são verdadeiras, assim como sua antiga felicidade. As histórias de grandes homens ou de violentos senhores-de-terra são verdadeiras, porque se encontram registradas nas recordações, não estão registradas simplesmente na memória, não fazem parte da memória histórica replena de falsos testemunhos.

Bachelard, como filósofo, procura abordar as imagens da casa reflexivamente, diligenciando “não romper a solidariedade da memória e da imaginação”, aspectos racionais da realidade. Os teóricos da literatura dignificam mais o imaginário-em-aberto do texto ficcional. Para Bachelard, “a casa abriga o devaneio, protege o sonhador, permite sonhar em paz”: a casa-sertão de Guimarães Rosa só se faz verdadeira graças ao devaneio, ao sonho do sonhador, às recordações da infância. Bachelard afirma que “os pensamentos e as experiências sancionam os valores humanos, ao devaneio pertencem os valores que marcam o homem em sua profundidade”. O objetivo do narrador roseano não é a aprovação dos valores sertanejos (matéria épica); é mais importante realçar os valores que marcam esse povo em sua profundidade. Por isso, o narrador “sonha em paz” (Bachelard), quando recria o sertão da infância, pois assim valoriza um espaço que lhe é caro, vivenciado em um clima de devaneio. As lembranças do narrador encontram-se ancoradas nesse sertão de sonho, integra pensamentos, imagens, recordações. Nessa integração sustenta-se o retorno de Nhô Augusto (agora, personagem secundário, uma vez que, de ora em diante, o personagem principal será o próprio narrador), retorno pautado por um discurso intrincado, no qual a realidade se encontra modificada pelo crivo dos sentimentos interiorizados. Neste discurso (típico da estética de transição do modernismo para o pós-modernismo), vale mais a criatividade do imaginário-em-aberto poetizado, mesmo que esta criatividade apareça dentro dos moldes ficcionais.

Este artigo faz parte de um capítulo da Tese de Doutorado de Neuza Machado: DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL (Sobre a obra ficcional de Guimarães Rosa), defendida na Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ, já registrada na Biblioteca Nacional/Ministério de Educação e Cultura (MEC), Rio de Janeiro.

Este artigo foi publicado em MOMENTOS DE CRÍTICA LITERÁRIA IX – ATAS DOS CONGRESSOS LITERÁRIOS DE CAMPINA GRANDE – 1994 (Coord. e Org. de Elizabeth Marinheiro). Campina Grande: Editora Universitária, 1996, p. 290-295).

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